Outra da cigarra e da formiga
Diário da Manhã
Publicado em 17 de agosto de 2016 às 03:18 | Atualizado há 9 anosBem longe, no meio da mata, a cigarra, irritada, chacoalhava suas asas. A formiga, assoviando, vindo com uma enorme folha nas costas, ao vê-la perguntou:
— O que é que tá pegando, cigarra? Que arrumação é essa aí?
A cigarra parou e respondeu:
— Ah, são estas malditas asas, formiga. Não quero mais ficar lá em cima das árvores, só cantando, vendo o tempo passar. Cansei disso. Cansei. Não quero mais asas. Pra mim chega.
A formiga, atônita com a sinceridade da cigarra e condoída com tamanha angústia, colocou a folha no chão e resolveu ajudar.
— Deixa eu dar uma mãozinha, cigarra?
— Pode sim, formiga!
A cigarra grudou com força num galho seco no chão, enquanto a formiga puxou suas asas. Com muito custo conseguiu arrancá-las.
— Doeu muito? — perguntou a formiga com as asas soltas nas mãos.
— Doeu um pouco, mas vai valer a pena. Já me sinto melhor, mais leve. Agora não quero mais saber de ficar cantando. Quero trabalhar, cortar e juntar folhas e sementes. Quero ser como você, formiga.
A formiga jogou as asas no chão e se sentou ofegando. Olhando incrédula para subversiva cigarra, milhões de histórias que seu avô contara sobre as formigas e as cigarras antigas passaram pela sua cabeça. Em primeiras reflexões psiquiformigológicas chegou a pensar que a cigarra podia estar com algum problema de ordem mental. Analisando melhor, com mais cuidado sobre o que ouvira, começou a pensar que ela tivesse mesmo alguma razão. Pôs-se de pé num impulso e chegou mais perto da cigarra fazendo cara de pidão.
— Cigarra, minha querida amiga, vai fazer alguma coisa com as asas? Eu poderia, por acaso, ficar com elas?
— Não preciso mais delas. Pode pegar! Não preciso mais delas, formiga — respondeu a cigarra olhando as asas com desdém. Pode sumir com elas. Agora quero ser como você, como você quero ser — repetia a cigarra andando para lá e para cá. Quero chão firme. Quero o silêncio do esforço. Mudança. Viva a mudança.
A formiga, também muito cansada da rotina de ficar todo verão enchendo a casa de comida para que os invernos serem iguais, enchendo a barriga, sossegada e confortada, vendo lá fora muitos outros se esturricando de frio e fome, sem nada poder fazer, pegaria carona naquela ideia.
— Vou ali e já volto, cigarra. Me espera, viu? — avisou a formiga já pegando as asas no chão.
— Anda logo. Acelera. Temos que começar a trabalhar já. Temos muito o que fazer. Ficar só enrolando, não leva a nada. — advertiu a cigarra.
A formiga saiu ligeira, desengonçada, arrastando as asas mata adentro. Foi ao cirurgião besouro e fez um implante. Depois recebeu instruções de voo e teve aula de canto.
Passado um tempo, a formiga chegou dando rasantes e cantando.
— Que diabo é isso, formiga? — gritou a cigarra surpresa.
— Gostou, cigarra? Tenho que te dar razão, a rotina cansa à beça. Agora quero, como você mesma disse, aproveitar a vida, variar um pouco. Quero notas bem melancólicas para chamar chuva. Quero voar e cantar, cantar e voar. Quero passar frio e fome no inverno. Quero tudo que uma legítima cigarra de La Fontaine tem direito — gritava a formiga gargalhando, abrindo e fechando as asas.
A cigarra, apesar de ter ficado meio aborrecida, não desprezou a amizade da formiga, pelo contrário. Recomeçaram suas vidas como quiseram, experimentando o outro lado da história, mas sempre se vendo e se falando.
Corridos alguns meses:
— Ei, formiga, já não é tempo de inverno? Cadê o frio? Não suporto mais carregar tanto peso.
— Pois é, cigarra! Também não faço a mínima ideia do que está acontecendo. Estou até rouca de tanto cantar. Além do mais, estas asas cansam muito, são pesadas pra burro. Haja coluna para suportar.
O grilo, ouvindo a conversa, não se conteve e meteu o bedelho na meio:
— Inocentes! Vocês não leem jornal?
As duas menearam a cabeça que não.
— O tal do aquecimento global — continuou ele — está causando a mudança climática. Esse ano não vai ter inverno, meninas.
A cigarra e a formiga olharam se olharam com uma tristeza de dar dó. Em seguida olharam para o céu ensolarado de rachar, através das copas ralas das árvores. Baixando a cabeça, as duas sentiram algo muito ruim por dentro, como um rasgo, enquanto o ar se tornava cada vez mais difícil e pesado.
Sem dizer mais nada, as duas caíram duras lado a lado.
(Hailton Correa, agente prisional, graduado em Letras pela UEG de Inhumas e escritor. Contato: [email protected])