Outros dois minicontos: “Causos” acontecidos em Mozarlândia e Acreúna
Diário da Manhã
Publicado em 30 de agosto de 2018 às 22:26 | Atualizado há 7 anos
Desde 1958, quando cheguei em Goiânia, nas muitas e constantes andanças de fins-de-semana ou nas visitas a fazendas de parentes e amigos, sempre mantive desperta a curiosidade e voltada a atenção para as peculiaridades do linguajar regional, o nosso gostoso “goianês”. Encantam-me e deliciam-me expressões e vocábulos do uso cotidiano como: “bão demais da conta”, “trem custoso”, “pulou o corguim”, “aném perdi a novela”, “quando é fé ele chega”, “ele é veaco demais”, “meu time levou uma peia”, “vou fazer uma gambira”, “comeu pé de cachorro”, “ele apela por um beicim de pulga”, “ela deu rata” , “tem base?” , “estrupício”, “pestreca”, “perrengue”, “excomungado” e muitas outras. Impossível relacionar as palavras do extenso vocabulário típico, de que é bom exemplo o popularíssimo “trem” , cuja semântica abrange múltiplos significados. Outra característica do falar goiano – também mineiro e paulista – consiste no costume de abrandar o final da palavras em “lh” e “lia”, omitindo as consoantes como em “mulher”, “família”, “mergulho” “maravilha” e “virilha” pronunciados “muié”, “famia”, “mergúi” , “maravia” e “viria”.
Foi nessa linha de linguagem que, em agosto de 2000, recolhi e ora relato o primeiro “causo”, presenciado em Mozarlândia, num minimercado então existente logo na entrada da cidade – “Armazém Ramos”, a memória ainda ajuda. Trata-se de amistoso diálogo, de final surpreendente e jocoso, entre um freguês e o dono do estabelecimento, os quais, pelo tom da conversa, já eram velhos conhecidos. Logo ao entrar, o comprador foi interpelando em voz alta: – Ô Fulano, tem ovo ? A resposta veio negativa: – Infelizmente acabou, não tem!. E o freguês insistente retrucou: – Não tem, mas deviria ter”. Ao que o comerciante, apontando discretamente para o entremeio das próprias pernas, trocadilhou: – De ”viria”, tem!
O segundo “causo” chegou-me por relato do dileto amigo Leonídio de Paula Ribeiro, proprietário de próspera fazenda banhada pelo piscoso rio Veredão, no município de Acreúna. Segundo ele, talvez louvado na voz corrente popular, lá pelos meados da década de 1970, falecera naquela emergente e pacata cidade um comerciante que atraía e fidelizava a clientela vendendo fiado, anotando diligentemente os débitos de seus fregueses de caderno para posterior acerto. Na época não havia nas paredes das vendas os avisos ‘Fiado só amanhã”, “Fiado só na presença do bisavô” ou “O Sr. Fiado morreu e foi enterrado”. Dias após as cerimônias fúnebres, ainda cerradas as portas do estabelecimento comercial, os familiares foram dar um balanço de encerramento da firma e o que encontraram? Uma bem cuidada caderneta com extenso rol de devedores registrados na bela caligrafia do finado: Tonho do açougue: 2 quilos de açúcar; Soldado Zeca: 3 quilos de arroz; Filó do salão de beleza: Compras no valor de R$ 52,00; Firmino Boiadeiro: Um par de botinas de couro de boi; Zé Pipoqueiro: 3 litros de óleo. E lá pras tantas, após uma lista de mercadorias nem tanto baratas, num total presumível de mais de 100 reais, os ciosos investigadores depararam-se com esta surpreendente anotação: “Um homem de chapéu que se eu ‘ver’ sei quem é”. Maktub!
(Raymundo Moreira do Nascimento, professor, advogado, jornalista e escritor)