Opinião

Pedaços de cada vida

Redação DM

Publicado em 22 de março de 2018 às 23:04 | Atualizado há 7 anos

Há mui­to tem­po, so­fri­da mu­lher foi ao meu es­cri­tó­rio e me pe­diu pa­ra aju­da-la, ex­pli­can­do que pre­ci­sa­va sa­far-se do ju­iz que pre­ten­dia to­mar seu fi­lho, de seis anos. Ela re­si­dia num po­vo­a­do per­to de Aná­po­lis, on­de uma As­sis­ten­te So­ci­al es­te­ve e fo­to­gra­fou sua cri­an­ça, e, com ela, de­sa­pa­re­ceu. – A mo­ça dis­se que iria le­var o me­ni­no pa­ra o Ju­iz de Me­no­res, ex­pli­cou Do­na Ge­ral­da, acres­cen­tan­do: – Pa­ra que a fo­to do meu fi­lho? – Pa­ra pro­vi­den­ci­ar o Pas­sa­por­te; ele irá pa­ra o ex­te­ri­or. A po­bre mu­lher en­trou em de­ses­pe­ro e foi pa­ra a ci­da­de.  Ali a ge­ni­to­ra bus­cou o Jui­za­do de Me­no­res, não te­ve aten­ção; cor­reu às au­to­ri­da­des, ne­nhu­ma im­por­tân­cia de­ram às su­as pa­la­vras nem ao seu cho­ro. Mas Ge­ral­da en­con­trou ca­su­al­men­te ou­tras mã­es afli­tas, pe­la mes­ma ra­zão.

A mu­lher cor­ria de um la­do pa­ra ou­tro em bus­ca de no­tí­cias do fi­lho. Ia do Jui­za­do ao Fó­rum da ci­da­de e tam­bém às cre­ches e ca­sas de aten­di­men­to a cri­an­ças po­bres e ór­fãs. Di­an­te de tais acon­te­ci­men­tos, fo­mos ca­da vez en­ten­den­do me­nos ta­ma­nha con­fu­são. O Bra­sil aca­ba­ra de sa­ir de um re­gi­me mi­li­tar e en­tre­ga­va a se­de do go­ver­no ao pre­si­den­te elei­to, Tan­cre­do Ne­ves, que, no en­tan­to, não po­dia as­su­mir; es­ta­va em co­ma e ou­tro pron­to pa­ra as­su­mir o co­man­do da na­ção.

Fa­la­ram do meu tra­ba­lho à do­na Ge­ral­da que bus­ca­ra meus prés­ti­mos. Fui com ela ao Fó­rum en­con­trar com o ju­iz e o pro­mo­tor. Lá che­gan­do, fo­mos re­ce­bi­dos por um ofi­ci­al a quem so­li­ci­ta­mos fa­lar ao Ju­iz. – Es­pe­re um pou­co. En­trou re­pe­tin­do meu no­me que eu lhe pas­sa­ra. Em se­gui­da vol­tou dan­do or­dem pa­ra en­trar­mos. Pou­co de­pois éra­mos cin­co na sa­la do ma­gis­tra­do; ele deu-nos a pa­la­vra: – Sim dou­tor, es­tou acom­pa­nhan­do a se­nho­ra Ge­ral­da, na so­lu­ção de um pro­ble­ma.

– Sim, de que se tra­ta?

– Do fi­lho de­la, o Lau­ro, su­miu do seu po­vo­a­do e foi tra­zi­do, se­gun­do cons­ta, pa­ra es­ta ci­da­de, de on­de se­rá en­ca­mi­nha­do pa­ra um ca­sal no es­tran­gei­ro.

– Ah! Ex­cla­mou o me­ri­tís­si­mo. É o ca­so do Lau­ro.

– Es­se mes­mo Dou­tor!

– E o que vo­cê quer com ele? In­da­gou a au­to­ri­da­de.

– Ver se con­si­go com o se­nhor fa­zê-lo vol­tar à com­pa­nhia da mãe. Foi re­ti­ra­do de­la, con­tra­ri­an­do tan­to sua von­ta­de, quan­to à da cri­an­ça, que foi vis­ta a úl­ti­ma vez com a As­sis­ten­te So­ci­al que tra­ba­lha pa­ra o se­nhor.

– Sim, mas não pos­so en­tre­ga-la. Es­tá sen­do ado­ta­da por um ca­sal es­tran­gei­ro e vi­ve­rá mui­to bem.

– Por qual ra­zão a re­ti­ra­da do má­trio po­der?

– Ela é pu­ta. Tem vi­da ir­re­gu­lar.

– No Bra­sil, dou­tor, gran­de par­te das mu­lhe­res po­bres tem ro­dí­zio de ma­ri­dos. E afo­ra es­se re­cur­so, são tra­ba­lha­dei­ras, di­a­ris­tas, la­vam rou­pa , cos­tu­ram, es­for­çam-se a va­ler. Em se­gui­da, di­ri­gi-me ao pro­mo­tor: qual a sua pa­la­vra, se­nhor pro­mo­tor? Ao que ele dis­se, cla­ra­men­te:

– Há uma Lei que diz que mã­es pros­ti­tu­tas têm com­por­ta­men­tos in­com­pa­tí­veis com a nor­ma­li­da­de.

– Di­ga­mos, en­tão, que, se os pa­is dos se­nho­res – pro­mo­tor e ju­iz – pa­is e mã­es, se pre­va­ri­ca­vam an­tes do ca­sa­men­to, os se­nho­res en­tão não po­de­ri­am ser cri­a­dos por eles? E es­tão aqui?

O pro­mo­tor não gos­tou e fa­lou ao ju­iz:

– Ex­ce­lên­cia, di­an­te des­sa ofen­sa, sin­to-me sob sus­pei­ção; pe­ço mi­nha re­ti­ra­da do ca­so. Com li­cen­ça. O au­xi­li­ar do ma­gis­tra­do (o faz tu­do) ex­cla­mou:

– Quer que o pren­da, Dou­tor?

– Não, pre­fi­ro que vo­cê se re­ti­re da sa­la.

– Sim, se­nhor! Ba­teu con­ti­nên­cia e se afas­tou. Re­su­min­do, o dou­tor me fa­lou:

– Es­pe­re um pou­co. Saiu de sua sa­la por uma por­ta in­ter­na e, mi­nu­tos de­pois, vol­tou com o Lau­ro, o fi­lho de do­na Ge­ral­da. Dis­se:

– Po­de le­vá-lo. Agra­de­ci ao ma­gis­tra­do e fui com o ga­ro­to ao en­con­tro da mãe que se acha­va no hall do Fó­rum. Foi aque­la fes­ta en­tre mãe e fi­lho. É is­to. Me voy.

 

(Iron Jun­quei­ra, es­cri­tor)


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