Opinião

Por que Pianchão, de forçado vendedor de sabão, foi ser funcionário público

Redação DM

Publicado em 26 de abril de 2017 às 22:05 | Atualizado há 8 anos

“Seo” Onésimo, pai do meu falecido amigo Pianchão, gozava de muito conceito na cida¬dezi¬nha de Cruz das Almas, na Bahia, onde possuía uma fábrica de sa¬bão que abastecia toda aquela região, vendendo, no grosso e no retalho, o já famoso sabão “Dubom”, de quatro qualidades: o sabão de massa de pri¬meira, o marmorizado azul, o marmorizado rosa e o preto.
Todos os dias, ao voltar da escola, Pianchão era obrigado a tirar a farda, vestir um macacão, calçar as botinas ringideiras e passar a tarde raspando o fundo de tachos grudados de sabão, serviço que não era lá de suas preferências. Sujeitava-se a carregar caixas de sabão à cabeça a ter que manejar a raspadeira ou atender a freguesia no balcão do varejo. Mas a preferência pelo serviço mais pesado justificava-se: ganhava quatrocentos réis em cada carreto.
As raspas e aparas de sabão, em grande quantidade, eram dadas de esmola à pobreza, que se estendia em quilométricas filas ao longo do quarteirão vizinho, pois o Onésimo Pianchão prezava a qualidade e jamais estragava ou escurecia o sabão de primeira com o aproveitamento de raspas e aparas. Com isso, lucrava a pobreza, que semanalmente se via abaste¬cida.
Muitos compravam à vista, mas grande parte da freguesia tinha conta, e assentava na caderneta seus débitos para acertos nos dias 1º e 5 de cada mês. E Pianchão era quem gostava de bater pernas na rua para fa¬zer os recebimentos.
Um dia, chega-lhe ao detestado balcão da venda um pretinho cria do dentista da cidade, Dr. Antônio, para ver uns quilos de sabão. O mole¬que, de seus treze anos, era cheio de modas, conversador e prosista; todo cheio de lérias, foi logo falando:
– Dona Iná mandou buscar dois quilos de sabão de massa e dois de azul.
Muito a contragosto, por detestar o serviço, Pianchão cortou lá de qualquer jeito, e sobraram duzentos gramas. Como o velho Onésimo de¬testava aparas, Pianchão coçou a cabeça e perguntou ao moleque se ofen¬dia levar duzentos gramas a mais. O moleque prosista disse que não tinha “po¬brema”, e levou o sabão, para alívio do caixeiro.
Não tardou muito, volta o pretinho, desta vez desaforado e cheio de razões, falando gatos e sapatos, chamando a atenção da multidão de lava¬deiras que apinhavam a calçada de trouxas de roupa suja, enquanto aguardavam ser despachadas. E no maior desaforo, o crioulinho atiçou o pacote de sabão, que chegou a arrebentar, espalhando sabão na venda, enquanto arrematava:
– Dona Iná mandô dizê assim que você prestasse mais atenção nas coi¬sas! Ela queria era dois quilos, e não dois e duzentas, t’ouvino?
Não prestou, não. Pianchão se queimou e, ajudado por uma velha lavadeira que pre¬sen¬ci¬ara a venda momentos antes, argumentou que o rapazola havia con¬cor¬dado com o excesso, mas este fincava pé, que não, que era “menas verdade”, que era conversa e desculpa do Pianchão.
Aí Pianchão, espumando de raiva, pegou embaixo do balcão uma barra de sabão bem comprida e, sério, perguntou:
– É deste sabão que dona Iná quer?
O pretinho prosódico, todo importante por estar sendo o centro das atenções, disse que era, fazendo uma cara de pernóstico, que açulou ainda mais a raiva do Pianchão.
Diante da afirmativa do molecote, que nem desconfiou, Pianchão deu-lhe uma sabãozada na cabeça, que o sabão vergou e a ponta, pegando-lhe a nuca, derrubou-o desarcordado e de olhos duros no teto da venda.
Deu um banzé dos diabos. Chamaram a Assistência, molharam a ca¬beça do pretinho desmaiado, e até o dentista, de quem o pretinho era cria, veio empavonado exigir satisfações, que isso, que aquilo, e acabou foi en¬trando no tapa, que o irmão do Pianchão, José, encheu-se de brios tam¬bém e aplicou exemplar tunda no tiradentes.
Serenados os ânimos, Pianchão disse ao pai que, para evitar novos in-cidentes, o remédio era deixar de mexer com sabão. E conhecendo al¬guns funcionários do Departamento Nacional de Estradas de Ferro, um dos chefes conhecidos por doutor Bandeira, carregou-o para o escritório, e, lá, depois de um teste e de um estágio, passou a diarista de obras, funcio¬ná¬rio público. Isto em 1941.
Mas de funcionário público Pianchão não tinha nem tique, pois só vi¬via era de topografia, locando linhas de transmissão por este Brasil afora, e en-quanto estava com 35 anos de serviço, foi contar: metade era de li¬cença, que ele só vinha à sede habilitar-se a novo afastamento.
E quando lhe perguntávamos por que viera a ser funcionário público, se vivia sempre era de licença, sua resposta vinha em cima da bucha:
– Só porque não gosto de mexer com sabão.

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