Opinião

Por uma pedagogia da indisciplina

Diário da Manhã

Publicado em 26 de fevereiro de 2016 às 01:15 | Atualizado há 9 anos

Quero falar sobre alguns fatos (fatos são sempre históricos porque remetem a um tempo, recente ou distante), ocorridos em um lugar (o que é coisa de geógrafo) e, para tanto irei me utilizar de breves palavras oriundas da nossa língua oficial, o Português, porque estou impedido de lançar mão do ioruba, dizimado com muitos negros que, açoitados pela escravidão, perderam vidas e, com elas, sua cultura. Também não posso fazê-lo a partir da língua dos povos tupinambá (àquelas que provêm do tronco tupi), porque uma verdadeira carnificina abateu-se sobre índios quando aqui chegaram nossos colonizadores. Restou-me a última flor do Lácio, inculta e bela como nos disse o poeta parnasiano Olávio Bilac, ao fazer sua ode à língua portuguesa. E, assim, recorro às letras para escrever esse périplo cujas águas percorridas são turvas e cujos navegantes, muitos deles (muitos de nós) pouco se apercebem do quão difícil é compreender esse país. Recordo-me de um trecho de uma canção de Adriana Calcanhotto, chamada “Negros”, que diz assim: Lanço meu olhar sobre o Brasil e não entendo nada! Entender, compreender, elucidar, esclarecer, iluminar, papel dos educadores, cujo sentido maior é alfabetizar politicamente o ser, eis que trato de pedagogia e, então, tenho aqui, diante de mim, reunidos numa pletora de questionamentos e enigmas, tempo, espaço, língua-linguagem e conhecimento. Numa sociedade em que perduram o autoritarismo e a violência como prática amiúde empregada pelos grupos dominantes, os grupos socialmente hegemônicos (patrões, heterossexuais, cristãos, brancos, homens), urge a construção de um contra-poder, de uma retórica e uma prática cotidianamente nutrida pelo inconformismo. O silêncio é a morte da política, a letargia é a vitória do opressor. Tenho medo dos que buscam sempre o consenso, mais ainda dos que não se posicionam em momento algum. Conforme Goethe, em Os sofrimentos o jovem Werther, “Os mal entendidos e a indolência causam, talvez, mais discórdia no mundo do que a duplicidade e a maldade”. Como diz outra canção, de Cazuza, Roberto Frejat e Denise Barroso, “ah que tempo mais vagabundo é esse que escolheram pra gente viver”. Um tempo em que impera toda sorte de preconceito e intolerância e cujos resultados são milhares de mortes de mulheres, negros, gays, travestis, transexuais, povos indígenas e populações tradicionais todos os anos, muitas delas provocadas pelo aparelho do Estado. Ora, alguém acredita no Estado? Seria ele neutro, o Estado moderno, guardião da lei e provedor da ordem? Estou certo de que não. Nosso Estado é branco, é heterossexual, cristão e masculino. Tivemos em nossa história, presidentes de condutas absolutamente reprováveis e que, muitas vezes, passaram incólumes diante da opinião pública. Mas não, quando se trata de uma mulher no exercício da presidência, toda crítica é, por si só, válida, mesmo àquelas críticas que ferem a dignidade humana. Puta, vagabunda, peste são alguns dos xingamentos que acompanhamos cotidianamente quando consultamos opiniões públicas na internet sobre a presidenta Dilma. Para mim, é como se cada mulher desse país se tornasse alvo de violência. Sabe por quê? Porque à mulher, na visão de muitos, cabe obedecer a ordens, cumpri-las tão somente e, no âmbito do Estado, o preconceito institucionaliza-se. Há preconceito institucional, a homofobia que leva muitos professores a tratarem de forma diferente seus alunos gays, travestis e transexuais (a evasão escolar nesse grupo é altíssima), o racismo recorrente nos altos cargos públicos quando da escolha de seus ocupantes, o machismo que as mulheres sofrem nas Instituições quando, por exemplo, engravidam (lá vai ela pedir licença maternidade mais uma vez). “Ah que tempo mais vagabundo é esse que escolheram pra gente viver”…Mas os tempos vindouros, a depender de como enfrentamos o preconceito e a intolerância, podem ser muito piores. Uma onda de conservadorismo paira sobre nós e atinge, em cheio, até mesmo aqueles espaços que, a princípio, nunca imaginaríamos que pudessem ser “contaminados”. Refiro-me à Universidade, lócus privilegiado da construção do conhecimento, de disseminação das ideias, de exercício da pluralidade, de convívio com a diferença. Ah, a Universidade! Um universo de saberes, uma profusão pensamentos. Seria assim? É nosso papel mantê-la viva, pulsante, é nosso papel permitir que ela promova o desconforto. E por isso falo, e por isso acredito no espírito verdadeiramente transformador e revolucionário da juventude. A universidade está carente não apenas de recursos, mas de Indisciplina… Detesto, das profundezas do meu âmago, essa palavra: disciplina. Maldita, ela separa tempo, espaço, língua-linguagem, separando, assim, o conhecimento. Ao fragmentar, por meio de seus conceitos e categorias de análise, a compreensão dos processos ela escamoteia, muitas vezes, o real sentido das coisas. E, assim, as ideias ficam fora do lugar. Tornemo-nos indisciplinados, mas não a indisciplina miserável dos que acreditam contestar quando se calam ou agem com indolência. Precisamos sim, e cada vez mais, da indisciplina dos que questionam, debatem, contestam, objetam e denunciam. Se algum de vocês que lê esse texto for, em algum momento, vítima de preconceito, não se cale, reivindique o respeito à diferença que deve mediar as relações sociais numa sociedade minimamente civilizada. Respeito à diferença é reconhecer, no outro, o direito de livre manifestação de sua religiosidade, do uso do seu corpo, de sua orientação sexual, de suas ideologias. A retórica da diferença, o contra-discurso, deve ser a prática cotidiana dos grupos subalternos, daqueles que são vítimas da hostilidade de indivíduos e instituições. Do contrário, estará morta a universidade, porque morta estará a política que deve ser o seu combustível. Não acredito na ciência neutra, a defesa da neutralidade axiológica em se tratando das ciências humanas é uma heresia enquanto retórica e uma violência enquanto prática social, porque é ela que dá margem para a opressão que se faz exercida em nome do saber. Ora, seu substrato é o positivismo, o mesmo que conferiu base para a teoria da superioridade da raça ariana no âmbito da antropologia ou àquelas, no âmbito do saber médico, que enxergaram, na homossexualidade, uma patologia. Ambas balizaram a experiência do holocausto, justificando o assassinato de negros e homossexuais. São simpáticos à tese da homossexualidade como patologia (doença) os evangélicos, especialmente dos estratos mais conservadores, que defendem a chamada cura gay. Recorrem às teses racistas àqueles que acreditam que os negros possuem menor escolaridade porque seriam dotados de menos inteligência do que os brancos e não pelo fato de que foram historicamente alijados do acesso à toda sorte de direitos. A luta por direitos é a luta por democracia. No nosso caso, um país cujas formas tradicionais da dominação patrimonialista legaram uma promíscua relação público-privado, a democracia está em sua aurora. Tomo de empréstimo as palavras do nosso maior sociólogo, Florestan Fernandes (2005, p. 51): “O estatuto colonial foi condenado e superado como estatuto jurídico-político. O mesmo não sucedeu com seu substrato material, social e moral, que iria perpetuar-se e servir de suporte à construção de uma sociedade nacional.” Entender o presente requer, inevitavelmente, que evoquemos nosso passado. (Isso é história, não apenas isso) E, assim, retomo o início de minha fala e me posiciono uma vez mais. Posicionar-se é usar a palavra, de modo coeso e coerente na construção do argumento (Isso também é letras) a fim de ensinar, o exercício de educar com o objetivo de transformar a realidade tornando o mundo mais justo e mais humano (Isso é pedagogia, não apenas isso, mas isso também o é!) num país em que múltiplas territorialidades se convergem, conformando uma cultura (Isso é geografia, estou certo disso). Assim, a Universidade, lócus por excelência da crítica, da contestação e do inconformismo, deve ser tomada pela indisciplina para que possamos sepultar definitivamente toda e qualquer forma de intolerância e preconceito!

(Glauber Lopes Xavier, pós-doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, professor efetivo da Universidade Estadual de Goiás)


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