Porte de arma é tiro pela culatra
Redação DM
Publicado em 4 de dezembro de 2015 às 23:23 | Atualizado há 10 anosAntes de iniciar este artigo fui até o espelho, estufei o peito e afirmei, com a convicção dos fervorosos: “Eu sou um homem de bem e quero andar armado. Sou um homem de bem!” Esse é o mantra ecoado diariamente Brasil afora pelos que veem numa pistola ponto 45 a garantia de sua segurança, sem se dar conta que pode ser uma ameaça a si próprio e a outros. Dizem o óbvio: “Os bandidos estão armados.” Claro. Criminosos andam mesmo armados, inclusive de revólveres adquiridos legalmente. O fato é que minha assertiva frente a minha imagem não funcionou. Não me convenci de que preciso de armas para coisa alguma. Porém não é o que pensa a maioria dos deputados que compõem comissão especial da Câmara – entre eles os goianos deputado delegado Waldir (PSDB), que desfila de coldre e assusta colegas no Legislativo, e o deputado pastor João Campos (PSDB) – que aprovou, recentemente, o relatório que flexibiliza a aquisição e o uso de armas. São integrantes da famosa bancada “BBB” – Bíblia, Bala e Boi, formada por 293 deputados. Informações nos jornais divergem quanto ao valor (50 mil reais ou 400 mil reais?), mas João Campos recebeu de uma fábrica de revólveres em sua campanha de 2014. Ele e outras centenas de deputados e senadores. Só a bancada da bala na Câmara tem 240 integrantes, entre os quais delegados, militares e policiais, muitos financiados pela Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) e Taurus. Autor do projeto, o deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC) se autopromoveu com seminários em todo o país para “discutir o tema com a população”. Esperto, aproveitou o momento de grande insegurança para tentar convencer as pessoas a aceitarem seu projeto de lei e, assim, tomarem para si uma tarefa que é do Estado, e para a qual não estão preparadas. Segundo o especialista em segurança pública e privada Jorge Lordello, também conhecido como “Dr. Segurança”, delegado no Estado de São Paulo por mais de duas décadas, 90% dos que reagem a assaltos são baleados. “Se vão morrer ou não é uma questão de destino ou sorte”, diz. Ele publica em livros e ensina que não se deve reagir, na rua ou em casa. Mas o PMDB, por exemplo, não quer saber dessa história. É o preferido da indústria armamentista. O financiamento do setor a quatro candidatos da sigla à Câmara dos Deputados somou R$ 100 mil. Ao todo, 17 postulantes a algum cargo eletivo receberam R$ 620 mil em doações das empresas de armamento e munição. Os dados são do Instituto Sou da Paz. O relator do projeto que aniquila o Estatuto do Desarmamento, O relator do projeto, Laudívio Carvalho (PMDB-MG), afirmou se tratar de uma vitória do Brasil: “Estamos devolvendo ao povo o seu direito de legítima defesa”, disse, pulando de alegria ante a “vitória do povo brasileiro”. Eu também sou povo brasileiro e não quero armas. Não quero morrer em troca de tiros – quando há possibilidade de vingar essa permuta. As chances de êxito a quem reage a bandidos é mínima, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Especialista em segurança pública respeitado no Brasil e no exterior, o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Maria Beltrame, implorou aos deputados para que não aprovassem o texto. Em vão. A bancada da bala quer, na verdade, instalar no Brasil o bang bang, o Velho Oeste, as loucuras balísticas dos Estados Unidos. Até quando vamos nos mirar nos estadunidenses em temas tão importantes? Por que não seguir o exemplo da Inglaterra, por exemplo, onde até os policiais da renomada Scottland Yard andam desarmados? Por que mirar num país que mistura Bíblia, bala, pena de morte e política? A polícia da Noruega também não usa armas de fogo. É claro que o exemplo desses países europeus não servem para o Brasil, mas a analogia mostra quem está na frente na segurança entre os desenvolvidos.
O fácil acesso a armas de fogo provoca tragédias não só no Brasil, mas também, por exemplo, nos Estados Unidos e Suíça. Recentemente os estadunidenses voltaram à discussão sobre o porte de armas depois de mais um massacre, desta vez em Charleston, na Carolina do Sul, onde um jovem branco e loiro, Dylann Roof, de 21 anos, que ganhou uma arma de presente do pai, abriu fogo contra negros numa igreja. Nove morreram, entre eles um senador e pastor. Já a Suíça lidera uma triste estatística: é a campeã europeia em número de suicídios por armas de fogo. Em nenhum outro país europeu tantos suicídios são cometidos com armas de fogo como na Suíça. Surpreendentemente o número de domicílios armados também é superior à média. De 1996 a 2005, foram cometidos 3410 suicídios dessa forma no país. Um estudo publicado em 2006 concluiu que nesse tipo de suicídio a Suíça ocupa o segundo lugar, depois dos Estados Unidos: 57% do total de suicídios entre os estadunidenses ocorrem por uso de armas de fogo. A Finlândia e a Noruega ocupam a terceira e quarta posições, com 20%. Na Alemanha, mais abaixo na lista, são pouco menos de 8%, e na Espanha 5,5%. Na Suíça, 24% a 28% dos suicídios são cometidos com revólver e afins. Ou seja, com arma por perto, desastres são facilitados, inclusive disparos acidentais e crimes passionais. As armas encorajam os suicidas porque a morte é certa na quase totalidade dos casos, sobretudo no caso de tiro na cabeça. Embora traga uma falsa sensação de segurança, não é verdade que o “cidadão de bem” armado pode evitar crimes e dissuadir criminosos. Evidências científicas no Brasil e no exterior deixam isso claro. Três teses de doutorado em economia da PUC-Rio, da FGV e da USP evidenciaram que a maior disponibilidade de armas de fogo nas cidades causa um aumento significativo na taxa de homicídio, mas não possui nenhum efeito para dissuadir o criminoso profissional, bem como os roubos e os furtos subjacentes.
Há um mês Chris Harper Mercer, de 20 anos, disparou contra estudante na Umpqua Community College, faculdade comunitária no estado do Oregon. A faculdade, que fica a 9,7 km da cidade de Roseburg, foi fechada. Houve troca de tiros com a polícia e o saldo foi de dez mortos, incluindo o criminoso. Sete pessoas ficaram feridas, três em estado crítico. Há alguns dias, outro maluco entrou em ação em uma clínica de planejamento familiar, que inclui o aborto, em Colorado Springs, no oeste dos Estados Unidos. Dois civis e um policial morreram e nove foram baleados. Irritado, o que é raro, desta vez o presidente Barack Obama, que luta pelo controle de armas no país, desabafou: “Ponto final. Agora chega!” Na quarta-feira passada, dois homens e uma mulher entraram num edifício em San Bernardino, na Califórnia, e mataram 14 pessoas, segundo informações da polícia. Há outros 17 feridos. O tiroteio ocorreu no Inland Regional Center, uma instituição que atende “pessoas com deficiências de desenvolvimento”. Após perseguição, a polícia matou dois suspeitos.
Estimuladas pela irresponsabilidade de integrantes da bancada da bala, pessoas ingênuas repetem à exaustão que são de “bem” e têm o “direito à legítima defesa” e que o revólver é a solução. Não, não é. Sou um exemplo disso. Fui assaltado duas vezes e só não morri porque fiquei quieto. O bandido levou o que queria e eu estou vivo. Ao abordar, o criminoso vê o alvo apenas como vítima. Se perceber que está armada ou se reagir fisicamente, passa a ser inimiga mortal. É neste ponto que muitos viram estatística de homicídio ou tentativa. No Congresso, a bancada da bala está articuladíssima para derrubar o Estatuto do Desarmamento e, assim, pagar seus financiadores de campanha. Nos Estados Unidos, onde armas são vendidas como balas em armazém, tragédias são comuns. E o absurdo vai aos céus. A ex-secretária de Estado do governo de George W. Bush, Condoleeza Rice, declarou, quando estava no poder, que “o direito dos americanos de ter armas de fogo é tão importante quanto a liberdade de expressão e a de religião” (Rice é protestante e filha de pastor). E a farra das armas continua. Basta atenção ao noticiário para constatar a ação de loucos assassinos e o pânico em que vivem os estadunidenses e europeus, que, sob frequente ameaça de terrorismo, se armam desenfreadamente.
A articulação para transformar o Estatuto do Desarmamento num Frankenstein começou no ano passado, mas a comissão criada para este fim caiu ante a maioria dos deputados, favorável ao desarmamento. Contudo, logo no início do ano legislativo de 2015, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), fiel da Assembleia de Deus, ressuscitou todas as comissões que haviam sido sepultadas em 2014, entre elas a que analisa o projeto do “Estatuto de Regulamentação das Armas de Fogo”. Para conseguir a maioria na comissão, a bancada da bala pressionou as lideranças partidárias. Alguns deles abriram mão de outras vagas para ficarem no colegiado que discute o assunto. A mobilização deu ao grupo o comando do debate. Delírio: o projeto em debate reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para compra de armas, aumenta o número de armamento e munição que cada pessoa pode ter, acaba com testes periódicos para que se possa manter o porte, amplia para nove armas por cidadão e até 600 munições anuais, além de retirar da Polícia Federal e repassar à Polícia Civil o registro e autorização para o porte. A desfaçatez de membros da bancada da bala chegou ao ponto de o deputado Alberto Fraga (DEM-DF) propor porte de arma para congressistas, com êxito até o momento. A comissão aprovou também o direito a taxistas e caminhoneiros de andarem armados e a aquisição de armas por quem já esteve preso e por pessoas investigadas por crimes violentos, o que hoje é proibido. Exaltado, o deputado João Rodrigues (PSD-SC) bradou, durante debate na comissão que assassina o Estatuto do Desarmamento: “…as pessoas vão matar alguns bandidos. É bom que se faça essa limpeza, essa faxina.” Além de pôr fim à atual legislação do armamento, Rodrigues parece querer extinguir também as polícias Civil e Federal, o Ministério Público e a Justiça. Tudo seria resolvido ali, naquele disparo fatal, certo ou errado. E cuidadosamente esquece dos grandes criminosos do país, os de terno e gravata. Para João Rodrigues, bandido bom é bandido morto, esses aí das ruas, e que se danem as leis. O negócio é ampliar a barbárie.
O texto aprovado na Câmara libera também a compra de armas para quem já esteve preso e para pessoas investigadas por crimes violentos, o que hoje é proibido.
No Brasil, aproximadamente 50 mil pessoas são assassinadas todos os anos, 70% delas por armas de fogo. A média mundial de mortes cometidas com armas de fogo é 42%, segundo a ONU. É importante destacar que, a cada dia, cinco pessoas são assassinadas pela polícia brasileira. O número, que se refere ao ano de 2012, é 4,6 vezes superior ao dos Estados Unidos. Naquele ano, 1.890 pessoas foram assassinadas no Brasil e 410 nos EUA. As informações foram levantadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma ONG que anualmente compila os dados estaduais e traça um perfil da violência pelas 27 Unidades da Federação. Apesar de os dados serem um tanto antigos, o ano de 2013, não há por que acreditar que houve melhora de lá para cá. O comércio clandestino, que permite a qualquer cidadão adquirir armas facilmente, é um problema sério que a sociedade brasileira está longe de vencer. Apesar de estar bem atrás do Brasil em número de mortes por armas de fogo, os Estados Unidos não podem comemorar. A preocupação do presidente Barack Obama mostra a gravidade do uso indiscriminado de armas no país. Depois da tragédia na igreja, ele declarou: “O momento é para reflexionar a respeito da filosofia, o sistema de leis, o controle das armas de fogo e o modo de vida que ocasiona comportamentos criminosos como este. Em diversas ocasiões tenho tido que fazer declarações similares, após lamentáveis incidentes de violência armada nos quais morreram pessoas inocentes…” Não é inteligente relativizar o percentual de mortes entre os dois países. O relevante é que, no Brasil e nos Estados Unidos, armas de fogo matam muito.
É falácia dizer que o cidadão é contrário ao Estatuto do Desarmamento, como quer a bancada da bala. No referendo de 2005, a pergunta era apenas sobre um item: se a venda de armas a civis deveria ser proibida. A decisão pela permanência da venda a civis vem sendo respeitada. Cidadãos ainda podem comprar armas, desde que comprovada sua necessidade, aptidão e baixo risco de uso indevido. O que é certo é que o Estatuto do Desarmamento é muito mais amplo, regulando diversos aspectos da circulação de armas de fogo, inclusive restringindo o porte e a posse. Não há apoio popular às armas, pelo contrário. Pesquisa de 2013 do Datafolha mostrou que o brasileiro é absolutamente contra até mesmo a posse de armas: 62% afirmaram que a posse deveria ser proibida, pois ameaça a vida de outras pessoas. A arma do cidadão de bem – de novo o “cidadão de bem” – se envolve em crime, sim! A ligação entre mercado legal e ilegal é amplamente comprovada. A CPI do Tráfico de Armas da Câmara dos Deputados de 2006 analisou as armas apreendidas, ou seja, envolvidas em crimes, e documentou que 86% das armas apreendidas provinham do mercado nacional, ou seja, haviam sido fabricadas e vendidas no Brasil; 68% das armas relacionadas a crimes haviam sido vendidas por lojas autorizadas, sendo 74% destas para pessoas físicas e 25% para empresas de segurança privada; 18% das armas foram desviadas das forças de segurança do país. Pesquisa mais atual, realizada pelo Instituto Sou da Paz em 2011 e 2012, com mais de 14 mil armas apreendidas na cidade de São Paulo, identificou que 78% delas eram nacionais; 2/3 das armas de fogo tinham sido produzidas antes do Estatuto (2003), o que comprova que o controle mais rígido dificultou o acesso às armas também para a criminalidade e que sentimos até hoje os efeitos perversos da legislação permissiva que existia anteriormente. Ou seja, a arma do “cidadão de bem” também abastece o mercado ilegal.
E o Brasil quebrou um triste recorde: teve o maior número de pessoas mortas em um ano, segundo dados divulgados recentemente pelo Mapa da Violência 2014, que compila dados de 2012. Ao todo, foram 56.337 mortes, o maior número desde 1980. O total supera o de vítimas no conflito da Chechênia, que durou de 1994 a 1996. É o dado mais atualizado de violência pelo Brasil e tem como base o Sistema de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, que registra as ocorrências desde 1980. A taxa de homicídios também alcançou o patamar mais elevado, com 29 casos por 100 mil habitantes. O índice considerado “não epidêmico” pela Organização Mundial da Saúde é de 10 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes.
A população sinaliza que é mesmo favorável ao desarmamento: desde 2004, foram entregues mais de 600 mil armas de fogo à Polícia Federal. E as entregas, mediante justa indenização, continuam. Para o bem da segurança pública e privada.
(Edmar Oliveira, jornalista)