Opinião

Preocupante decisão do Supremo Tribunal Federal

Diário da Manhã

Publicado em 23 de fevereiro de 2016 às 23:52 | Atualizado há 9 anos

Pertenço à categoria social dos advogados, pra não dizer a orgulhosa classe social nossa, onde, há mais de cinquenta anos exerço a sempre sublime e polêmica advocacia, acreditando e confiando nas difíceis e às vezes inesperadas decisões da Justiça que, por serem da estrita competência e sabedoria jurídica dos magistrados, bem como da filosófica e práxis do seu empirismo humano, estão sujeitas a sofrer diversas influências ou fatores, endógenos e exógenos, sendo um deles, a perigosa ação e domínio infligidos pelo tempo, continuamente enigmático, misterioso e complexo, notando-se que já à época de Ovídio (43ª. C.17 d.C), Metamorfoses, XV, o tempo foi considerado “devorador das coisas” ou “tempus  edax rerum”; devendo ser por isso, certamente, que  Virgílio  (70-19 a C),  Geórgicas, III, chegou a recomendar: “Foge irreparavelmente o tempo” ou “Fugit irreparbile tempus”, da versão latina. O título epigrafado e o singelo fundamento exposto têm muito a ver com o surpreendente e preocupante julgamento do Supremo Tribunal Federal, ocorrido no dia 17 do mês em curso, autorizando prisão de réus antes que o processo termine. Vale dizer: antes da ação penal ter decisão final com a chamada coisa julgada ou “res judicata” material, após passar por três graus de recursos condenando ou liberando o acusado, findando-se ali a consagradora força do princípio da inocência do réu, agora, infelizmente, no meu entendimento, alcançado e já sem eficácia a partir da decisão acima citada. Assim, os condenados, como já está acontecendo, podem ir para a cadeia depois que sentença for confirmada em julgamento de 2ª instância, ou seja, antes de se esgotarem todos os recursos possíveis da defesa.

Numa época na qual no Brasil só se discute punição e cadeia; em que a vergonha saiu de moda; a liberdade como regra geral no estado de direito democrático é a exceção; prisões preventivas e outras restrições à liberdade, além de comuns na tal “Lava Jato”, viraram regra nas decisões judiciais diárias e notícia sem nenhum alarme na imprensa, sobretudo na mais comprometida com a ideologia da direita autoritária, assimilada por escravismo secular. Desse modo, a decisão anunciada realmente surpreende e causa preocupação, já manifestada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, expedindo Nota. Vejam que não se trata de decisão unânime. Os ministros do STF Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e o presidente da Corte, Ricardo Lewandovski, defenderam que o tribunal deveria manter o entendimento, fixado em 2009, de que só caberia a prisão quando o processo não permitisse mais recurso, chegando Lewandoviski ao seguinte argumento:

“O sistema penitenciário está absolutamente falido, se encontra num estado inconstitucional de coisas. Agora nós vamos facilitar a entrada de pessoas nesse verdadeiro inferno de Dante.”

A advertência do presidente do STF é pertinente. Tem completa razão de ser. Contudo, mesmo sendo da responsabilidade do Estado, onde se elenca o augusto Poder Judiciário, o assunto não é prioridade na gestão pública, onde os presos, mormente negros e seus descendentes, são tratados com visível indiferença. Em vez de se resolver essa questão, induvidosamente injusta e desumana, onde os mais pobres são maioria, o Estado, através do Judiciário, além de institucionalizar ou legalizar a prisão antes de ter a coisa julgada, ferindo o consagrado princípio da inocência do réu, está pressionando os condenados, com ênfase da Lava Jato, e estimulando novos delatores, como se a apelidada delação premiada fosse o meio mais justo de se fazer justiça no Brasil. É estranho! Muito esquisito!

Ainda bem que há até os que consideram um retrocesso essa nova posição do STF, dentre muitos outros, o caro advogado, especialista em direito criminal, Pedro Paulo Guerra de Medeiros, ao qual me alinho, também entendendo que não se pode deixar de refletir mais profundamente sobre a presunção de inocência, deixando a impressão de que se estaria dando satisfação à sociedade, em parte já tomada e assimilada de ódio, inclusive racial. Será que essa mudança no sistema penal brasileiro combateria com eficácia a ideia de morosidade da justiça, a forte sensação de impunidade, cujo “remédio” é bem em outro, dependendo de políticas públicas adequadas?  Quem é que não sabe que dependemos de mais comarcas devidamente estruturadas? E que não é só disso? Para que descrever ou narrar o que todo governo já sabe?

Sim, é verdade, os condenados agora podem chegar mais rapidamente à cadeia, o que não deixa de ser um absurdo. Segundo Folha de São Paulo, de 21 do mês corrente (A4), “o Supremo rasgou a Constituição. Os ministros agiram como legítimos representantes do desejo popular de punição. Não posso chamar de corte constitucional um Supremo que age assim”, declara o jurista Mário Sérgio de Carvalho. O famoso advogado Alberto Toron, que defende Fernando Bittar, sócio do sítio frequentado por Lula em Atibaia, além de afirmar que “as delações devem aumentar porque sempre que o sistema que o sistema penal “mostra seus dentes”, cresce a possibilidade de delações e confissões”, acrescenta que a decisão do Supremo “…equivale a uma estratégia usada pela Inquisição nos séculos 16 e 17. Bastava os inquisidores mostrarem os instrumentos de tortura para um investigado confessar”.

Enfim, valendo-me do paradigma do tempo, que por certo influenciou a decisão, valho-me de texto do sábio livro do Eclesiastes, 3, 1-3:

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar”.

 

(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM ([email protected]))


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