Quando a consciência habita mais do mesmo – II
Redação DM
Publicado em 25 de janeiro de 2017 às 00:44 | Atualizado há 8 anos
“Há um conhecimento sobre a realidade que só se adquire com a literatura. Aumentam as pessoas alfabetizadas e aumenta a gente que não entende o que lê” (Juan J. Millás)
Preso às garras da artimanha midiática a propalar diversificados interesses e visões de mundo que manipulam a (a) política do ‘status quo’, contraditório e dominado, o trabalhador bebe da fé cega em relação ao nada, equilibra na corda bamba que o separa da certeza cambaleante ou sua negação. Livre da prisão escondido em cavernas pós-modernas respira verdades que mentem sobre o universo digital em meio à lama ferrenha da batalha pela sobrevivência – a luta de classes. Alienado à condição de bucha de canhão, o pecador deve ao santo, anseia alguma inclusão, promove a via-crúcis da lista de exclusão. A comprovação da salvação, a partir de outra vida em outro mundo, depende do fato de que “o dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão no núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e a racionalidade própria. Minha hipótese é, portanto, a seguinte: a racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado comum, pela própria divisão” (Rancière, 1996, p. 368 apud Vellozo & Guarato, 2015, p. 77)
A modernização das eras transpira a negligência estatal em relação ao ser social, traz à tona o saldo político negativo da ação pública imediatista, ‘band aid’ da gestão que adota a propaganda imediatista, promove a fé no amanhã, alardeia a necessidade do cidadão (conceito e falácia burguesa) levantar mais cedo e olvidar o estômago que ronca menor quando esmola por emprego. “No século XX os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vem a chamar-se modernização” (BERMAN, 1986, p.16 apud Guerra, 1999, p. 89)
O termômetro da conjuntura atesta a febre do desemprego estrutural, apura a elite endinheirada, endossa o atestado da verdade exposta na mentira. A pós-eleição é manchete que dá conta de posses e cargos, conchavos e promessas, vagas e cartas marcadas, mais do mesmo. A manobra politiqueira assegura a gestão de conveniência na conveniência do poder patrimonialista – pai do exército de reserva. A ferramenta do feitiço da ajuda, encravada na política social do favor, promove o grande capital que amealha a caridade, a benevolência e o voluntariado ao tempo em que suscita reflexão e indaga: “Por que não fenecem as elites dominadoras ao não pensarem ‘com’ as massas? Exatamente porque estas são o seu contrário antagônico, a sua ‘razão’, na afirmação de Hegel. Pensar ‘com’ elas seria a superação de sua contradição. Pensar ‘com’ elas significa já não dominar” (FREIRE, 1977).
Mal sabia o educador brasileiro influenciador de educadores mundo afora que o início do século XXI daria à luz um mundo mais que moderno ensinado a distância. Ao estilo de ensino ‘fast food’ as instituições fingem ensinar, o professor faz de conta que educa, alunos pretendem agregar algum conhecimento de causa na elaboração do construto efêmero impresso em diploma destinado a aumentar o ganho, galgar uma vaga de trabalho, emoldurar na parede suas ilusões. Grande parte das revisões de trabalhos e pesquisas paridas na academia denuncia a pouca apreensão da teoria aplicada, reflete a escrita empobrecida no cerne desta questão que é o poder de busca e alienação do iPhone, fetiche de consumo que retira do sujeito o poder de criação na apequenada arena do aprendizado. Banal e internalizada pelas vias da (in) experiência, empiria e (des) conhecimento advindos da reza no boteco e na cola emprestada de São Google quando “tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta dependência necessária perante o sujeito, e apenas existe para o sujeito. O mundo é representação” (SCHOPENHAUER, 2001. p.9).
Voraz, a cantora Pimentinha esbanjava sábias palavras, e, ao ser entrevistada sobre a loucura da mesmice, cobrou “uma via pra gente poder escoar a loucura porque senão fica tudo, sabe, aquela loucura via Embratel, padronizada que nem ervilha em lata, só mudando a marca e não fica legal. Loucura é loucura e é fundamental deixar por aí solta como o diabo gosta. E a gente vai catando um pedaço aqui e dali, e, de repente, quando os ‘ômi perceber’ eles já tão com a cabeça feita” (Elis Regina). A (in) validade (i) moral do poder dos “ômi” mundo afora destoa da ética. Vampiresca, mata crianças inocentes, retrata o simbolismo mercadológico da conjuntura global atirada junto à cultura no lixo da (des) construção do homem. O (des) humano molda a forma de barbárie, fomenta a manipulação da minoria pela ferramenta do controle social da massa ou fluxo, estrutura a mundialização do efêmero, reforça a filosofia da retórica de que, quando desejo, tudo eu posso, até naquele ou naquilo que não fortalece.
Se a bola de cristal das ilusões vislumbra anjos e monstros, a íris da concretude, em sua frieza e realidade, nada enxerga. Enquanto pingar uma gota filosófica que afague a fagulha da sabedoria vestida com a cor de todas as cores com textura, sabor e sangue da igualdade, o barco das possibilidades humanas será capaz de singrar em meio ao oceano de banalidades capitalistas e globais. Ao habitar e dividir o mundo dos loucos os normais e suas falácias cairão por terra, assim como as barreiras à dignidade que tornam precárias as chances de um amanhã mais participativo. Enquanto o trabalhador vigia a marmita e respira a umidade escura do umbral, números socializados explicam o porquê de seus direitos não vingarem, afinal, o ser social não é número, nunca foi. E por falar em números e gráficos, enquanto 1% da população – 62 bilionários – detém a riqueza socialmente produzida no planeta, outros 99% vendem sua força de trabalho ou engrossam a fila do exército de reserva, prova cabal econômica de que a luta de classes engendra o sistema capitalista que segue indecente e global.
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, escritor, filósofo,mestre em Serviço Social, pesquisador em Ciências da Religião/PUC-Goiás;aluno-ouvinte em Direitos Humanos/UFG)