Opinião

Quando a lei aborrece para além do razoável

Diário da Manhã

Publicado em 12 de fevereiro de 2018 às 21:06 | Atualizado há 7 anos

Sob a jus­ti­fi­ca­ti­va de pre­ser­var a sa­ú­de de quem fre­quen­ta um con­sul­tó­rio mé­di­co, as nor­mas da Vi­gi­lân­cia Sa­ni­tá­ria cri­am um cli­ma de ter­ror, com vi­si­tas sur­pre­sa e má von­ta­de, quan­do não, apa­ren­te per­se­gui­ção. Com a cri­se hí­dri­ca, ba­nhei­ros pú­bli­cos fé­ti­dos, hi­gi­e­ne pre­cá­ria e co­mi­das cau­san­do vô­mi­to e di­ar­reia, os fis­cais se afer­ram em de­ta­lhes inú­te­is on­de não es­tá acon­te­cen­do na­da anor­mal. Não des­co­nhe­ço que a pre­ven­ção se­ja o me­lhor re­mé­dio.

O meu con­sul­tó­rio de En­do­cri­no­lo­gia aten­de, em sua mai­o­ria, ca­sos de obe­si­da­de, di­a­be­tes e pro­ble­mas de ti­re­oi­de, por­tan­to, do­en­ças não con­ta­gio­sas. Lá não é fei­to ne­nhum pro­ce­di­men­to que não se­ja a con­sul­ta clí­ni­ca. Ain­da as­sim, de­mo­rei um ano pa­ra aten­der às ina­cre­di­tá­veis so­li­ci­ta­ções, pois as leis e exi­gên­cias so­frem acrés­ci­mos a ca­da se­mes­tre.

O pré­dio es­tá em uso há mais de 20 anos. O pro­je­to ar­qui­te­tô­ni­co foi apro­va­do pe­la Pre­fei­tu­ra na épo­ca da ins­ta­la­ção. A Vi­gi­lân­cia Sa­ni­tá­ria so­li­ci­tou no­va apro­va­ção do pro­je­to. O ar­qui­te­to fez a vi­si­ta, pe­gou a plan­ta apro­va­da, viu que não ti­nha ne­nhu­ma mo­di­fi­ca­ção, ti­rou uma có­pia, e pa­guei R$155,81 pa­ra a Pre­fei­tu­ra. Cus­to da “no­va plan­ta”? R$500,00 pa­ra o ar­qui­te­to, além de R$81,53 do CREA – Con­se­lho Re­gi­o­nal de En­ge­nha­ria e Ar­qui­te­tu­ra. To­tal gas­to por um ca­pri­cho inú­til: R$737,34. O ar con­di­cio­na­do com­pra­do seis mes­es an­tes, qua­se vir­gem, re­ce­beu a or­dem pa­ra ser aber­to e “lim­po”. Re­sul­ta­do: não mais res­fria co­mo an­tes. Foi fei­to o pa­ga­men­to de R$120,00. Es­tes fo­ram os itens que mais me ir­ri­ta­ram.

O Inmetro re­ce­beu R$99,36 pa­ra afe­rir a ba­lan­ça co­mum, gra­du­a­da a ca­da 100 g, afe­ri­da há 12 mes­es. A tro­ca anual do car­vão ati­va­do do fil­tro foi R$140,00. Se­pa­ra­da há 11 anos, ti­ve de pa­gar R$22,74 pa­ra atu­a­li­zar meu so­bre­no­me no ca­das­tro mu­ni­ci­pal, item não exis­ten­te nos anos an­te­rio­res, mas já gra­fa­do atu­a­li­za­do por di­ver­sos anos. Tam­bém pa­guei R$23,07 ao car­tó­rio por al­go que le­vou o no­me de “Cer­ti­dão de In­tei­ro Te­or”, mais o no­vo Al­va­rá Sa­ni­tá­rio de R$341,70.

A me­sa de exa­me de­ve ser co­ber­ta por pa­pel des­car­tá­vel ou len­çol, tro­ca­do a ca­da uso, e ex­pli­ci­ta­do o mo­do co­mo é la­va­do. Des­de a cons­tru­ção do edi­fí­cio ha­via um ra­lo sem tam­pa. Foi co­bra­da a tro­ca des­se ra­lo por ou­tro tam­pa­do. Eram guar­da­dos no ar­má­rio sob a pia, pro­du­tos de lim­pe­za de um la­do e ca­fé, açú­car e co­pos des­car­tá­veis do ou­tro. Foi pre­ci­so se­pa­rar os ma­te­ri­ais, que não se to­ca­vam, em dois ar­má­rios dis­tin­tos.

A se­cre­tá­ria não po­de ter aces­so à fi­cha nem aos exa­mes do pa­ci­en­te. Tam­bém es­tá ve­ta­da de fa­zer qual­quer per­gun­ta re­fe­ren­te ao mo­ti­vo da vi­si­ta. A ca­da seis mes­es a cai­xa d’água do pré­dio é hi­gi­e­ni­za­da, o Cor­po de Bom­bei­ros faz vis­to­ria e tam­bém ocor­re a de­de­ti­za­ção. É pre­ci­so ela­bo­rar re­la­tó­rio ex­pli­ci­tan­do co­mo se faz a lim­pe­za dos mó­veis, do chão e do ba­nhei­ro, com de­ta­lhes de ma­te­ri­ais, ves­ti­men­ta, lu­va, bo­ta e ho­rá­rio. A co­le­ta do li­xo, mes­mo que só de pa­pel e co­po des­car­tá­vel, é um ri­tu­al dig­no de uma guer­ra.

A ou­tra guer­ra são os re­mé­di­os amos­tra grá­tis. Pre­ci­sam es­tar num ar­má­rio fe­cha­do à cha­ve, e a se­cre­tá­ria não po­de ter aces­so a eles. Não se po­dem jun­tar com­pri­mi­dos de du­as cai­xas de ori­gem, e quan­do ven­cem de­vem ser des­car­ta­dos por em­pre­sa es­pe­cia­li­za­da con­tra­ta­da. É ne­ces­sá­ria uma lis­ta com o no­me, lo­te e tem­po de va­li­da­de. Quan­tos mé­di­cos to­mam con­ta pes­so­al­men­te das su­as amos­tras, quan­do mui­tas con­sul­tas não de­mo­ram quin­ze mi­nu­tos?

Os in­ter­mi­ná­veis tri­bu­tos co­bra­dos, an­ti­gos e no­vos, fa­zem a so­ma ele­var-se ao im­pos­sí­vel, coi­sa de ar­re­ca­da­ção pre­da­tó­ria. Sem fa­lar nas co­bran­ças de ISS – Im­pos­to So­bre Ser­vi­ço, CRM – Con­se­lho Re­gi­o­nal de Me­di­ci­na, Sin­di­ca­to, As­so­cia­ções e de­mais ta­xas pes­so­ais. Quem pa­ga uma con­sul­ta mé­di­ca e acha um ab­sur­do – e é mes­mo- pre­ci­sa co­nhe­cer os abor­re­ci­men­tos e os cus­tos de um al­va­rá de fun­cio­na­men­to, sem con­tar o ar de po­lí­cia que os fis­cais ad­qui­rem. Al­guns são ar­ro­gan­tes (al­guns pro­fis­si­o­nais tam­bém são), e já te­ve con­ver­sa que aca­bou na de­le­ga­cia. Mé­di­co pre­ci­sa tra­ba­lhar e o di­nhei­ro que en­tra, não en­tra fá­cil, em­bo­ra pa­re­ça que sim.

 

(Ma­ra Nar­ci­so, mé­di­ca e jor­na­lis­ta)

 

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