Quando brilha o coração
Redação DM
Publicado em 24 de dezembro de 2017 às 00:11 | Atualizado há 7 anos
O jovem estava pensativo e fui falar com ele, ali mesmo na rua. Tranquilo, mas com cara de muito vivido, olhou-me nos olhos e pareceu-me receptivo. Naquele dia, aprendi lição com o que dele ouvi. Foi uma deliciosa surpresa.
Contou-me estar abandonado desde criança. Ao nascer, fora adotado e depois de crescido sem nunca ter frequentado uma escola, fora abandonado à própria sorte. Sendo adolescente acostumado ao trabalho incessante como forma de sobrevivência, jamais teve tempo de entretenimento na vida. Nem mesmo para se descontrair, pois o cansaço diário, contínuo, não permitia. Nunca experimentara nenhum vicio. Carinho? Só o cultivado por ele mesmo para preservar os valores d’alma. E foi nesse detalhe que me demorei, perguntando suas impressões mais íntimas. Aprendi, então, lição inesquecível que divido, aqui, com os que me acompanham nesta jornada.
Quando lhe indaguei se sentia tristeza, respondeu-me desconhecer esse sentimento; diante de minha insistência, reafirmou não senti-la nem mesmo quando fora abandonado. Viu a realidade de sua existência como uma oportunidade na vida. Oportunidade de tornar-se independente e progredir pelo seu esforço próprio.
E desânimo? Nunca, disse, me afirmando isso com muita segurança. Fiquei admirado com tal atitude. Intrigado, queria saber mais dessa criatura tão especial.
E no trabalho, é feliz? Nunca estive melhor, disse-me, e continuou: vivo dele e para ele. Embora simples, faço tudo o que me está ao alcance para atender às finalidades da tarefa diária. Sou pago para isso e não posso me distrair um instante sequer durante a jornada. E explicou mais a este curioso e surpreso interlocutor.
Deste meu trabalho simples, afirmou-me, resultarão catedrais para a fé dos homens sinceros, abrigo para os de boa vontade, hospitais para os necessitados, asilos para os debilitados, escolas para os interessados, abrigos para os desamparados e até prisões para os infelizes que tropeçam na vida.
Fiquei encantado com tamanha sinceridade e tanta consciência daquele jovem simples ali na minha frente. Parecia estar declinando conhecido conto da literatura clássica. Quando quis saber qual o seu trabalho, respondeu-me:
– Quebro pedras.
( Não pensei em pedras de crack pois seus olhos refletiam a sinceridade da luz do coração e não a do sofrimento. Desejei-lhe um Natal feliz ).
(Francisco Habermann é professor da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu. Contato: fha[email protected])