Opinião

Quanto vale uma rapadura?

Redação DM

Publicado em 12 de dezembro de 2015 às 23:29 | Atualizado há 9 anos

Mais vale um gosto do que uma carrada de abóboras, já diziam os mais velhos, principalmente na zona rural.

Com isto nos ensinavam a respeitar as preferências alheias, sem a tola pretensão de querermos impor o nosso gosto ou o nosso modo peculiar de ver as coisas, como se fôssemos portadores do melhor critério e do mais completo conhecimento da vida.

De certa forma, também, ensinavam-nos a conviver com as diferenças…Uma advertência para que não nos puséssemos a criticar o que não entendíamos ou a dar palpite a respeito do que não conhecíamos bem, evitando, deste modo, a indevida intromissão na vida dos outros, salvo quando chamados a isto pelo próprio interessado.

É o que tenho procurado aplicar em minha vida. Maior abertura de horizontes, maior compreensão para com as atitudes alheias, mais capacidade de ouvir, melhor convivência com as diversidades, desde que não atinjam o nível do absurdo, porque aí não dá pra calar a boca de jeito nenhum.

É assim que o gaúcho tem sua preferência pelo churrasco que prepara como ninguém ( e disso se gaba ) e, ao mesmo tempo, aprecia o chimarrão que tantos acham amargo…

É também deste jeito que o carioca adora uma bela feijoada ( de feijão preto, ora ), o baiano se derrete pelo seu acarajé e pelo mugunzá, o mineiro adora seu frango com quiabo e polenta, o goiano não dispensa de jeito nenhum o arroz com pequi, o paraense aprecia demais o pato no tucupi nos restaurantes ou o tacacá na rua mesmo e o nordestino a sua carne de bode e uma bela rapadura.

Sabe-se que naquelas bandas secas e pobres do Brasil, se for dado ao brasileiro do nordeste um pedaço de rapadura e um pouco de farinha, pode-se esperar muito trabalho ou, se for uma viagem, uma boa caminhada. Dá sustança, comentam.

O que é certo é que, gostar de rapadura, praticamente o Brasil inteiro gosta. Principalmente aquelas bem artesanais, sem processo industrial a lhes impor moda e tirar o gosto. As coisas têm que ser como são. Quando começam a inventar novidades o que era simples, original e bom demais começa a perder a qualidade.

Esta questão da rapadura é séria. Atravessou as nossas fronteiras, como a cachaça…

Já vi estrangeiros trocando sem pestanejar uma boa dose de Whisky por uma igual de pinga, com a afirmação posterior de que esta é superior àquela.

Década de 80. Curso pós graduado em Direito Agrário.

Resultado de uma luta incansável de quase dez anos do grande jurista Prof. Dr. Paulo Torminn Borges junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, o Mestrado estava sendo inaugurado. Primeira Turma, pequena, mas integrada por nomes ilustres como o Prof. José Bezerra, o Prof. Benedito Ferreira, o Prof. Joveny Sebastião Cândido, Profa. Valéria Braga, Prof. e Magistrado Aguinaldo Denisart Soares, Alcir Gursen etc.

Tive a honra de ter integrado aquela primeira turma, de quem o dedicado Prof. Dr. Paulo Torminn queria tudo e esperava tudo.

Observados as disciplinas e os programas respectivos e a intensidade dos múltiplos horários, tinha-se a nítida impressão ou a certeza mesma de que o Mestre queria dar ao curso uma dimensão nacional e internacional. E deu. Professores estrangeiros vieram ministrar determinadas disciplinas e todos se impressionavam com o peso cultural desta pós graduação.

Dentre eles, o Prof. Dr. Duque Corredor, também Magistrado na Venezuela, do qual logo todos ficamos amigos, dada a sua extrema simplicidade e simpatia. Eram tempos difíceis. A Universidade bancava, às vezes, quando não eram alguns ou um dos mestrandos, a viagem e o hotel destes professores, mas os passeios e os jantares estes tinham que ser custeados pelos mestrandos…E lá íamos nós, noite após noite…

Lembro-me que, quando se aproximava o fim da estada do prof. Duque Corredor, ficamos preocupados em dar a ele um mimo, uma lembrança do Brasil, especialmente de Goiás, talvez uma peça de artesanato. Houve quem pensasse em Poteiro, mas logo desistimos da ideia, ante o preço.

Foi quando alguém alvitrou: Por que não perguntamos diretamente a ele qual a lembrança que ele gostaria de ganhar? Ele é simples e certamente indicará algo que não seja tão pesado ao nosso bolso.

Ideia aprovada e logo posta em execução. Indagado o mestre titubeou um pouco, pensou uns instantes e respondeu sem qualquer sombra de dúvida:

Quiero una rapadura!

O espanto foi grande. E quando buscamos explicações ficou evidente o desejo daquele ilustre visitante. Era uma rapadura, mesmo!

Compramos duas e ele ficou muito satisfeito.

Pois é, um dia destes o muito querido amigo Jefferson me surpreendeu. Ao passar, chegando à noitinha, pela portaria do prédio onde resido, o porteiro me entregou um pacote retangular, tamanho médio. Endereçamento correto, em meu nome e com a assinatura, atrás, do remetente. Custei esperar chegar no meu apartamento para desembrulhar a minha curiosidade e ver o que havia no pacote.

Pois não é que o Dr. Jefferson Bueno me presenteou com uma rapadura ? E uma rapadura especial, muito docinha. Nem mole nem excessivamente dura, simplesmente deliciosa de se comer, pura ou com uma farinhazinha…

Caro amigo, a rapadura já está nos seus últimos pedacinhos dos muitos em que foi dividida. Mas o seu suave doce não vai desaparecer fácil do meu paladar.

Sabendo-me nordestino, você estava consciente de que me estava oferecendo algo muito apreciado…

Então, meu amigo, esta rapadura tem valor inestimável. Não importam os reais que você gastou para comprá-la. O seu preço se traduz num aroma de amizade sincera, numa brisa suave de educação e lhaneza com os quais você vem desenhando a estrada de sua vida honesta, fiel e dedicada à sua família, aos seus amigos e às pessoas de um modo geral, demonstrando que na sociedade dos homens ainda há muitos seres humanos.

Obrigado, muito obrigado, meu amigo!

 

(Getulio Targino Lima, advogado, professor emérito ( UFG ), jornalista, escritor, membro da Academia Goiana de Letras – E-mail: [email protected])

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