Que direito temos
Diário da Manhã
Publicado em 15 de dezembro de 2017 às 23:36 | Atualizado há 7 anos
O que nos permite avançar em direção ao outro, para dizer a esse outro, o que ele deve, pode, ou não fazer?
Questões educacionais, religiosas e “formação” profissional, são, na maioria das vezes ensinadas para os outros. Não há garantias de que se aprenda, mas, o objetivo moldador, formador, domesticador se enraíza de tal forma, que nem sempre, o aluno, o religioso ou o profissional, consegue fazer uma reflexão do porquê as coisas precisam ser do jeito que são. Volto então à pergunta: “Seríamos seres sem capacidade própria de orientação, ao ponto de termos sempre as verdades sendo apontadas para nós como obrigações a seguir, tal como se segue uma receita infalível para a felicidade?
Autonomia zero. A impressão que tenho é a de que um grande número de pessoas ao nascer, teve um chip implantado em seu cérebro para seguir um padrão de comportamento guiado com o único sentido de satisfazer aos desejos do ego, da distração e do consumo, necessariamente nessa ordem. Não podem perceber o universo que vivem. Fazem parte de uma grande engrenagem e devem continuar fazendo parte dessa engrenagem. Quem destoar, está fora.
Sobre o ego.
O primeiro controle exercido sobre o sujeito está na manipulação de outros sobre seu ego. É necessário ser um vitorioso, mostrar-se de bem com a vida, estar atualizado, ter amigos e se expor, como se cada dia fosse um novo capítulo na sua história, que agora, mais do que nunca, precisa se alimentar dos flashes, da exposição e da aprovação dos outros. Afinal, não teria graça nenhuma as conquistas se os outros não soubessem.
Sobre a distração.
Nada pode ser aprofundado, senão, corre-se o risco de se perceber que está sendo enganado, ou enganada. Notícias se resumem as manchetes e as chamadas de no máximo três linhas. Se comenta tudo. Tudo na superficialidade. Tudo é debate radical. Exércitos “dos contra” X exército “dos a favor”. Música de mau gosto, youtubers momentâneos, extremistas medievais falando mais do mesmo sem apresentar nada de novo e alimentando o ódio em discussões que não levarão alguém a lugar algum, a não ser, o da distração. É o circo. É a arena onde os gladiadores enfrentam leões sob os olhares da plateia que quer sangue. Sangue dos outros. Arrancar o olho e chupar no buraco.
Sobre o consumo.
Inflou o ego, distraiu-se, o próximo passo para alimentar os dois é fazer consumir. As compras fazem as engrenagens girar. Não estou aqui falando de compras do essencial, ou daquilo que lhe proporcione uma melhor qualidade de vida. As pessoas estão sendo levadas a comprar os produtos descartáveis. O que não é descartável? O almoço, a janta, a parede da casa, os estudos, as amizades verdadeiras, a música de letras marcantes, a conta de luz, da água, o IPTU e IPVA”. A maior parte do que se compra é descartável. Se troca de roupa, de eletrodoméstico, de carro, de celular, de computador. A lista é interminável, porque até o que parece sólido, tem se desmanchado no ar.
Retomo então a questão central desse artigo: Que direito temos de escolher o que devemos ensinar, da mesma forma para diferentes pessoas, no mesmo espaço? Que direito temos de exigir que o outro acredite nas mesmas “verdades” que eu acredito? Por que a escolha profissional dificilmente se dá pelas potencialidades do sujeito e quase sempre é dirigida pela demanda de mercado? Ao pensar assim, muitas pessoas estão fazendo a mesma coisa, para disputar as mesmas minúsculas fatias de trabalho.
Todos os anos novos profissionais são colocados nesse mercado de trabalho. A massa de recém-formados chega para trabalhar fazendo o mesmo serviço (aqui não se discute qualidade) pela metade do valor, às vezes por um terço. Muitos não conseguem colocação. Quem consegue, vai ter que matar um leão por dia.
Estresse, ansiedade, insônia, depressão, sedentarismo e outros males em decorrência da profissão que sufoca (ou da falta dela), com o ego atingido, sem forças para se distrair e não podendo consumir, passa assim a alimentar a indústria farmacêutica. Há remédios para tudo, para todas as partes do corpo, porém, o ser como total, corpo e pensamento em um só ao mesmo tempo que é alguém único, não é reconhecido pela medicina ocidental. Trata-se em partes. Não se previne. O paciente não é gente, não tem família, não tem histórico e sua doença não tem origem no psiquismo. Demora-se a entender que o deprimido não quer morrer, ele quer apenas se livrar do que o faz sofrer.
Estou sendo pessimista? Talvez sim. Quero com isso fazer uma leitura do que está acontecendo e posso estar errado, equivocado, fazendo uma análise muito fria da situação. Mas temos jeito para resolvermos isso, ou, parte disso. O primeiro passo talvez seja sair do quadrado, das linhas retas, da pintura dentro das linhas. Podemos ousar mais. Duvidar mais. Argumentar mais. Ouvir mais. Ler mais. Caminhar mais. Olhar mais para o horizonte. Fazer diferente. Viver diferente. Ser exclusivo sem sê-lo apenas para chocar, mas ser exclusivo para ser você. Para ser somente o que é.
Mais autonomia, mais conhecimento, mais reflexão e menos paciência com o problema que tenta colocar alguém para baixo. Não podemos considerar “normal” viver mal só porque todo mundo vive assim. Nós merecemos mais. Eu ainda acredito que o caminho da educação seja o caminho da libertação. Só podemos nos libertar de algo, quando sabemos o que nos aprisiona, mesmo que continuemos aprisionados. Ao termos essa consciência descobrimos os atalhos. A liberdade é muito mais um exercício de imaginação do que um ato agressivo. Impor ao outro alguma coisa, é afirmar sua incapacidade de ser livre. Menos palavras, mais ouvidos.
(Altemir Dalpiaz, professor na Facsul)