Quem é normal do ponto de vista psiquiátrico?
Diário da Manhã
Publicado em 31 de outubro de 2015 às 22:53 | Atualizado há 10 anosResumindo as críticas da transexual (era homem virou mulher) B.C. em nossos últimos artigos, ela insurge-se contra o que ela alega ser preconceito de médicos e sociedade julgando-a “doente mental”. Diz que pessoas que fazem plásticas e mudam o corpo não são julgadas como tal pela sociedade.
Eu respondo dizendo, em relação à cirurgias plásticas que, em muitíssimos casos, são sim, fruto de doença mental, aqui no caso um distúrbio chamado de “dismorfofobia” que faz com que a pessoa veja defeitos graves corporais onde não os há, ou onde há apenas leves desvios. Pode usar medidas cirúrgicas , farmacológicas (“bombas”), estéticas, para “corrigir” o defeito. Tal defeito, além de super-amplificado, é vivido como “obsessivo” por parte do paciente. Em muitos casos, a estética “pula o córrego” e atinge a patologia. São pessoas geralmente com idéias prevalentes, insatisfeitas por motivos outros, as vezes ansiedade, depressão, obsessões. É muito comum, em consultórios psiquiátricos, vermos uma “síndrome” da mulher depressiva, que se julga abandonada pelo marido (ou que o foi mesmo, dada a poligamia deste) querer resolver seus problemas com cirurgia plástica.
A questão transexual , transgênera, é de uma “variação biológica”. Segundo o filósofo inglês I. Sccadding, “doença é uma variação biológica não-adaptativa”, ou seja, são variações que, ao contrário das variações “adaptativas”, promovem desgaste biológico, e este se manifesta na forma de sofrimento físico . O mental é uma variação do físico, mas não apenas isto; por exemplo, um pai de família normal, com interesses heterossexuais poligâmicos, pode estar sofrendo muito por interessar-se por uma relação extraconjugal que vai destruir sua família, o amor por sua mulher, o amor por seus filhos. A biologia deste homem (poligamia) poderia ser normal na época das cavernas, quando tinha de “fazer o maior número possível de filhos, espalhando genes”. No entanto, na sociedade de hoje, tal comportamento seria tido como desviante, e a sociedade pede seu comedimento. A sociedade pede um comedimento proporcional àquele que a maioria das pessoas “normais” conseguem cumprir. A sociedade pede, p.ex., monogamia, não que as “pessoas parem de beber água”. Se alguns não conseguem cumprir o que a sociedade julgou como sendo “comedimento”, este alguém deve estar, biologicamente, fora da norma. Como já dizia Sócrates/Platão, no Fedon, o corpo, em si, é uma doença, pois cria necessidades que são incompatíveis – algumas – com a “correta vida moral na sociedade”. Quanto à transexualidade, esta me parece levar a sofrimento, tanto é que muitos buscam tratamentos médicos (farmacológicos, cirúrgicos) para “curá-la”. Se não fosse “doença”, se não levasse a sofrimento, as pessoas , muitas delas, não iriam querer “curá-la” (vejam as aspas). É a mesma situação do homem casado aí acima julgar que sua “força de vontade” não está sendo suficiente para vencer a poligamia, de modo que ele precise usar antiandrogênicos para diminuir seu apetite sexual poligâmico… Ele poderia usar religião? Força moral? Apoio social? Sim… Ele poderia, deste modo, “curto-circuitar” sua doença, vencê-la; ou será que ele consegue vencer os instintos por que, de fato, não é um doente? Na época das cavernas, dos macacos, o homem tinha mais é de ser poligâmico mesmo, tinha mais é de esparramar filhos para todos os lados, aumentar o poder de sua carga genetica forte (quem é o melhor tem de ter mais filhos). Vide a argumentação sobre isto no livro “Guerra de Esperma”. No entanto, mesmo quando há doença de fato, mesmo assim, uma mente poderosa, uma disciplina poderosa, podem ultrapassar as ingerências da biologia e criar uma neo-realidade, uma realidade que, de certa forma, “anule” a tal doença… Eu mesmo, com minha bipolaridade, minhas perturbações biológicas, não tomo remédio para tudo, muita coisa eu “venço por vontade própria”. Não deixo de ser doente biológico (para mim não há estigma no nome “doente”, pois quase todos temos uma ou mais disfunções biológicas corporais neste momento exato da vida ) por causa de minha vontade que venceu o sintoma. Simplesmente passei a ser “mais santo”. Uma “santidade” que não podemos exigir de todo mundo, é bom deixar claro…
O leitor O. C . rebate : Sem o intuito de “explicar” a transgenitalizacao, mas no sentido da primeira infância, traumas precoces com efeito epigenético em um indivíduo geneticamente propenso (talvez link com a bipolaridade que disseste). Questão complexa, fisiopatologia complexa…
Eu respondo : Caro O.C., é, de fato, questão complexa a que você levantou . Eu penso que pode haver muito viés nesta sua afirmação. Em primeiro lugar, estatisticas mostram que, na população geral, há uma grande correlação entre transgenitalizados e transtorno bipolar. Como a bipolaridade tem forte agregação genética, é de se esperar que a família de muitos transgêneros, sempre há exceções, por motivos bipolares, sejam muito bagunçadas mesmo, com muita toxicomania, muita psicopatia, muita perversão, etc. Outra coisa é que, se os fatos que você citou, fatos familiares pejorativos, explicassem a transgenitalização, haviam milhões de pessoas nas portas das clínicas de mudança de sexo..,
A leitora L. S. G. argumenta: E porque ela, a moça transexual, conforme relatou nos outros artigos, não se sentia bem com o órgão sexual masculino? Da forma que ela colocou parece que acha que é ruim, que faz mal, que machuca (a transexual, que diz que gosta de relacionar-se com mulheres, diz que o órgão fálico é algo incômodo em suas relações). Ela diz que apesar de , na nova condição ser “lésbica”, acha isso bom, pois quer sentir-se como suas parceiras sexuais, dar e receber do mesmo modo, Como se bom fosse poder oferecer exatamente o mesmo que recebe”.
Eu respondo: Não me pareceu ser uma questão de “agressão”, L.S.G, e sim uma questão de inadequação dismorfofóbica mesmo (“não me sinto bem em meu corpo com um órgão destes”). Pelo que ela descreveu, ela tem um desconforto corporal com o pênis pois julga-se pertencendo a um sexo diferente. Pertencer-se a um sexo diferente (transtorno de identidade de gênero) tem de ser, psiquiatricamente, bem diferenciado de “sentir que há algo no corpo que incomoda”, que é característica de outro transtorno, o transtorno de morfologia corporal ( antiga dismorfofobia ). Tais pensamentos apesar de estarem ancorados em uma biologia anormal (fora da média) não querem dizer, ao contrário do que B.C. alega, que a “pessoa é louca”, “que tenha deformações de caráter”, “que não possa responder civilmente”, “que seja inválida”, incapaz, etc. Pelo contrário, em muitos casos a homossexualidade faz é “turbinar” os fatores de inteligência e de ação do indivíduo, assim como o faz a bipolaridade. Eu mesmo aproveito desta condição mórbida, doença bipolar, para escrever e trabalhar muito. Até a depressão me é útil, pois eu sinto bem mais o sofrimento dos pacientes do que muitos “psiquiatras normais”. Portanto, o preconceito está na cabeça de quem acha que o “nome de doente” faz é diminuir o indivíduo. Em grande parte das vezes, a doença é muito mais uma benção do que uma maldição, se você souber dela fazer bom uso.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra, artigos às terças, sextas, domingos – [email protected])