Reescrevendo a História – o centenário do “Barulho”
Diário da Manhã
Publicado em 16 de janeiro de 2018 às 22:43 | Atualizado há 7 anos
Um grupo de filhos de Dianópolis, antiga São José do Duro, lembrando-se de que no ano que vem completar-se-á um século da chacina retratada em “O Tronco”, de Bernardo Élis, e “Quinta-feira sangrenta”, de Osvaldo Rodrigues Póvoa, teve a feliz ideia de constituir uma verdadeira força-tarefa entre os intelectuais da terra para talvez enfeixar um documento de grande importância para todos nós, uma espécie de memória viva das angústias sofridas pelos nossos ancestrais, lembrando que quase todos nós tivemos familiares que sucumbiram numa luta meramente política patrocinada pela oligarquia dos Caiado, que, diante do banho de sangue que a caracterizou, ficou conhecida como “o Barulho”, retratado naqueles dois livros e em outros escritos pelo magistrado Abílio Wolney Aires Neto, estudioso do assunto, que hoje exerce seu cargo em Goiânia.
Das construções da época dos embates restam o casarão da família Wolney e o da matriarca Joaquina Fernandes de Oliveira. Havia, até a gestão do prefeito Dário Rodrigues Leal, nos primeiros anos da década de 1950, o famoso sobrado, onde foram, apesar de inocentes, chacinados pela polícia caiadista os lamentados personagens de Bernardo Élis e Osvaldo Póvoa. Quando criança, conheci aquela velha construção, que ficava em frente ao casarão da dona Joaquina Fernandes, e que serviu de escola para o mestre João Correia de Melo.
Os nove chacinados foram sepultados – como dissemos – numa ponta de rua, saída para a Bahia, local que ficou conhecido como “Os Nove”.
Passado o tempo, as famílias – acredito – mandaram construir uma capelinha simples e de adobes na ponta da rua, já pendendo mato adentro, para abrigar seus mortos. Por fim, o progresso foi escorraçando o mato, e a Capelinha dos Nove foi se destacando, mas não o suficiente para se tornar vistosa, diante da usina de arroz de tio Dito e das casas disseminadas pelas imediações. O avanço das ruas parece tê-la empurrado para o centro da cidade. Mas mãos caridosas, ajudadas pelo Poder Público, reformaram a capelina e cercaram-na com um gramado e identificaram-na por uma placa de bronze com os nomes dos nove mártires.
Todos conhecem pelo nome de “Os Nove” àquela parte da cidade que leva à saída para a Bahia: “Fulano mora nos Nove”, “Fui a uma festa nos Nove”, e assim por diante. O nome, aparentemente sem propósito, está ligado ao fato histórico de 1919 que, por seu turno, está inserido na história política do Tocantins e que o grupo de dianopolinos pretende reescrever.
No início do século, a exemplo de outros Estados brasileiros, imperavam os coronéis, que mandavam e desmandavam dentro de seus domínios. Na Vila de São José do Duro (hoje, Dianópolis), a liderança político-econômica era exercida pela família Wolney, que tinha como patriarca o intocável e lendário coronel Joaquim Aires Cavalcante Wolney. Seu filho, Abílio Wolney, falecido em sessenta e poucos, exímio político e de cultura assombrosa, despontou como uma das maiores capacidades do Estado, elegendo-se deputado simultaneamente em dois Estados (naquele tempo podia) e sendo até cogitado para a presidência do Estado, provocando uma cisão entre os Wolney e a cúpula governista, liderada pelos Caiado, que alimentavam uma grande inveja dos proeminentes nortistas.
Como represália para enfraquecer a importância dos Wolney, Totó Caiado, então presidente, nomeou gente de sua confiança para os cargos públicos da Vila do Duro, dentre os quais o de juiz municipal (Manoel de Almeida) e de coletor estadual (Sebastião de Brito Guimarães), sobrinho do coronel (mas seu inimigo político), a fim de dar um basta à hegemonia dos Wolney.
Anteriormente, um outro sobrinho do coronel Wolney, Agenor Cavalcante, fora morto pelo tio, quando, embriagado, foi desafiar a autoridade do respeitado chefe político dentro do próprio casarão onde o velho residia. Da cidade de Goiás, então capital, chegou uma comissão de inquérito, presidida pelo juiz comissionado, José Basílio da Silva Dourado, que não chegou a qualquer conclusão sobre a culpabilidade dos Wolney.
Depois, por causa do inventário dos bens de um agregado de Abílio Wolney, chamado Vicente Belém, cujo rol o coletor estadual e o juiz municipal, por razões meramente políticas, não aceitaram por entender haverem sido sonegados muitos bens do “de cujus” (quando, na verdade, eram objetos insignificantes), o coronel e o filho Abílio reuniram alguns homens, invadiram o cartório e obrigaram, a punho de armas, aquelas autoridades a concluírem o inventário, simulando datas, “obedecendo” a prazos, culminando com a sentença do irado e coagido juiz municipal Manoel de Almeida, que a proferiu a muque, com cano de carabinas futucando-lhe as costelas. E, “julgado” o inventário, Abílio e o pai carregaram o processo.
Foi só o coronel, o filho e os cabras saírem com o processo, Manoel de Almeida (juiz) e Sebastião de Brito (coletor) viajaram para Goiás Velha e foram chorar queixas ao presidente Totó Caiado. O fato chegou a talho de foice para servir de estopim da vingança do velho Caiado: comissionou o juiz de Celso Calmon Nogueira da Gama e o mandou com setenta praças e quatro alferes para apurar a invasão do cartório. Mas a intenção velada era, sem dúvida, arrasar com os Wolney.
Chegando à Vila, o juiz procurou aproximar-se dos Wolney, que já haviam deixado o povoado e se refugiado na fazenda Buracão, a duas léguas dali, com enorme contingente de jagunços armados até os dentes. O juiz Celso Calmon, velha raposa, fingindo demonstrar paz, foi desarmado à fazenda e lá convenceu o velho coronel a devolver-lhe o processo e a dispensar a cabroeira, em troca de sua impronúncia pelo crime que cometera, segundo ocoronel, em legítima defesa.
Assim fez o coronel.
Malmente soube da fazenda inteiramente desguarnecida, o juiz mandou invadi-la com a força policial, e os soldados assassinaram e saquearam o lendário coronel, levando sua família presa para a Vila do Duro, no dia de Natal de 1918. Foi um caso assombroso, beirando ao inconcebível, pois o velho e respeitado coronel Wolney, com justa razão, reinava como espécie de lenda viva.
O filho, Abílio Wolney, que conseguira furar o cerco, ficou revoltado (e estava coberto de razão) e viajou para a Bahia, onde recrutou mais de duzentos jagunços para tomarem a Vila e aniquilarem a força policial (àquela altura, o juiz já tinha ido embora, com a missão cumprida, deixando, apenas a soldadesca).
Quando soube da atividade de Abílio, o comandante da força, tenente Antônio Seixo de Brito, mandou recolher ao velho tronco de castigar escravos várias pessoas ligadas à família Wolney, como reféns, para obrigar Abílio a recuar: Wolneyzinho (irmão), meu avô Benedito e seu filho menor, Joca (amigos), o compadre João Rodrigues e seu filhos Nilo e Salvador, João Batista Leal, o “Janjão” (cunhado), Messias Camelo (sobrinho-afim de meu avô) e Nasário do Bonfim (agregado de João Rodrigues).
Quando a jagunçama atacou, em 16 de janeiro de 1919, os reféns foram friamente assassinados, e os nove foram enterrados em cova rasa nas cercanias da Vila, onde existe a capelinha, conhecida como a Capelinha dos Nove, dando nome àquele lugar.
Este episódio inspirou Bernardo Élis a escrever o monumental romance “O Tronco”, que, embora atribua nomes fictícios aos personagens, retrata com invejável capacidade narrativa toda a verdade. Mais tarde, meu irmão, Osvaldo Rodrigues Póvoa, reconstituiu toda a história e publicou “Quinta-feira Sangrenta”, que abrange toda a história do município, dando especial enfoque ao sangrento episódio.
Quem leu “O Tronco” ou “Quinta-feira Sangrenta” certamente gostaria de conhecer a Capelinha dos Nove, que ainda hoje está de pé, como que guardando no seu silêncio e tristeza o desfecho da sangrenta história da nossa velha Vila de São José do Duro.
Uma curiosidade: dizem os longevos que o nome do juiz Celso Calmon Nogueira da Gama ficou tão execrado, a ponto de Celso Aires Cavalcante, filho de Confúcio Aires Cavalcante e Ana Custódia Leal, apesar de batizado de Celso, ficou conhecido por Confúcio, pois o povo não queria nenhuma lembrança daquele magistrado que foi o causador da tragédia.
E esse sangrento episódio tocou no fundo do coração de um grupo de filhos da terra, que, capitaneados pelo juiz Abílio Wolney Aires Neto e pela advogada Maria Jovita Wolney Valente, ambos netos de Abílio Wolney, que foi advogado, médico, farmacêutico e uma infinidade de habilidades outras, além de, indiscutivelmente, ter sido o maior líder político do então norte de Goiás.
Pretendem, com a ajuda coletiva de todos os descendentes, onde pontificam escritores, poetas, médicos, professores e magistrados, coligir retalhos da nossa história local para inaugurar 2019, o centenário do “Barulho”, com a história de nosso torrão totalmente repaginada.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])