Selfies em Auschwitz
Diário da Manhã
Publicado em 14 de dezembro de 2017 às 00:04 | Atualizado há 7 anos
A que ponto nos deixaram insensíveis as anestesias destes tempos? Em que estágio estamos de analgesia? Em que grau estamos de estultícia do ego? Em qual altura de necedade das aparências? Em que índice de inépcia das máscaras? Em que degrau de enfermidade da essência? Em qual coeficiente de parvoíce do sentimento? Em qual patamar de selfiezação da vida? Em que nível estamos de cegueira do espírito?
Em fins do maio derradeiro, estive na tristeza abissal do complexo de Auschwitz-Birkenau, no sul da Polônia. O ambiente é aterrador. De um silêncio sinistro. De um silêncio que grita, chora, urra de dor, de fome, de fadiga, de moléstia, de terror. De um silêncio que cala, na morte. O silêncio de Auschwitz é a testemunha mais loquaz dos funestos horrores que lá ocorreram, ou melhor, que lá fizeram ocorrer. É o silêncio de um milhão e meio de seres humanos abruptamente emudecidos pela hediondez do nazismo. É o silêncio de um milhão e meio de irmãos nossos que foram calados. Foram ceifadas as suas vozes. Vozes de judeus, cristãos, ciganos, homossexuais, mulheres, homens, idosos, jovens, adultos, crianças. Vozes humanas emudecidas pelo horror da crueldade inumana. O silêncio de Auschwitz clama por misericórdia. É um silêncio que jamais se cala. Nunca se calará. É um silêncio estrondoso, estentóreo. O silêncio de Auschwitz gritará para sempre o eco das barbáries do holocausto.
E assim é necessário. Jamais podemos nos esquecer desse período em que a humanidade não só chorou, mas foi o seu próprio pranto imenso e dorido; não só sangrou, mas foi o seu próprio sangue vertido; não só foi estripado o seu espírito, mas foi as próprias tripas desventradas de si; forçada por tenebrosos anos a descrer em si mesma, tamanhas e inimagináveis atrocidades que tentaram impor a descrença no humano como se fosse a única via. Não podemos nos olvidar dos anos em que a humanidade – a nossa humanidade – de tão cruenta dor infligida, de tão dantesca dor sofrida, foi transformada no seu próprio choro, no seu sangue, nas suas entranhas.
Não podemos esquecer. Tenhamos vívida a lembrança, para que sempre meditemos sobre tudo isso, para que nos coloquemos em constante movimento de reflexão de nossas ações enquanto indivíduos humanos e enquanto humanidade inteira, a fim de que jamais repitamos esse passado e, a despeito das nossas infindas mazelas, lutemos incessantemente para sempre as superar.
A inscrição do portão principal de Auschwitz I já assusta pela hipocrisia sórdida e sarcástica e pelo abjeto sadismo condensados numa simples frase: “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”). Soa mais como um escárnio mordaz, lacerante.
Os blocos e corredores externos do campo de concentração guardam hoje uma suposta calmaria, que não deixa, contudo, esconder o terror dos sofrimentos, da dor, do medo, da indignidade dos prisioneiros, do asqueroso poder dos criminosos oficiais em nome do estado, das mais fundas agruras humanas, das misérias da guerra, da morte em vida, antes de morrer. E ainda hoje se pode sentir caminhando por esses corredores as procissões de espectros de pessoas guenzas, moribundas, macérrimas, em pele e ossos, quais cadáveres vivos à espera da morte.
Já os corredores internos de cada bloco trazem consigo suas histórias tenebrosas; reverberam os urros; ressoam os gritos e gemidos de dor daqueles que eram submetidos aos horríveis experimentos médicos, às malignas torturas e aos assassínios; os tétricos mares de lágrimas, de angústia, de aflição, de amargura, de agonia. O peito se aperta tanto ao andar pelos corredores de Auschwitz, que se remói. Lá, o coração da gente se esmaga. E o coração se indaga incrédulo, estupefato: Como puderam fazer isso, meu Deus?! Como puderam homens fazer isso com outros homens?! Como puderam com seus irmãos?! Irmãos nossos…
E essas perguntas irrespondíveis vão soando, ressoando, ressoando, ecoando, ecoando, ecoando… E ainda mais quando vamos caminhando pelos corredores e salas dalguns blocos de Auschwitz e vendo amontoados de milhares e milhares de óculos que, desde um certo dia, nunca mais viram; de sapatos que nunca mais calçaram os pés de pais de família; relógios pararam para sempre no tempo; escovas não mais pentearam os cabelos de suas mulheres; xícaras, panelas e vasilhas perderam para sempre suas utilidades; utensílios pessoais que, retirados dos deportados, jamais seriam usados novamente; malas que fizeram a sua última viagem, perdidas no tempo e no espaço, pois nunca mais acompanhariam seus donos para lugar algum. Os objetos ali amontoados e largados retratam o destino dos seus donos, como se, na verdade, fossem só um eufemismo da realidade que os esperava. Os homens e mulheres tiveram o mesmo destino dos seus objetos, sendo largados e amontoados em montanhas de corpos humanos, todavia, cabe a ressalva de que os objetos não foram incinerados. Foram, assim, tratados com mais dignidade que seus donos, feitos esses objetos deveras.
Das imagens que mais retorcem minha mente, das coisas que mais me chocaram na vida e inda chocam foi ver uma montanha de milhões de tufos de cabelos humanos, numa sala sombria de um bloco de Auschwitz. Os cabelos das prisioneiras e dos prisioneiros eram arrancados no tramitar de um processo em que, a cada etapa, era esfacelado um muito de tudo o que compõe a dignidade humana. Perdiam pouco a pouco, ou melhor, muito a muito, até perderem a dignidade toda. Perdiam os bens. Perdiam suas casas. Perdiam suas famílias. Perdiam suas nações. Perdiam seus direitos. Perdiam os cabelos. Perdiam os nomes. Perdiam as vaidades. Perdiam suas identidades. Perdiam as forças. Perdiam seus corpos. Perder a vida era só uma mera circunstância ante todas as perdas já consumadas. Ganhavam um número e um pijama listrado. Despersonalizados. Animalizados. Coisificados. Desumanizados, na insana sina nazista de destruir esperanças, dizimar vidas e sonhos, de eliminar o povo judeu e transformar o seu passado, o seu presente e o seu futuro em cinzas.
Os trabalhos forçados nos campos de concentração esgotavam as energias do corpo. Os castigos crudelíssimos desintegravam a frágil capa corpórea e esgotavam as energias da alma. Para dormir – se é que se podia – os beliches se amontoavam nos espaços numa espécie de repouso para que os próprios pensamentos torturassem, remoendo as incertezas e os medos. Os uniformes listrados cumpriam sua função dentro do processo de despersonalização. As estralas de Davi amarelas pregadas no peito, cujo uso era forçado aos nossos irmãos judeus – para segregá-los, rotulá-los, estigmatizá-los – também servia a esse processo, qual símbolo de ódio e escárnio dos nazis genocidas.
Em Auschwitz II-Birkenau, compondo o cenário de horror, vemos os trilhos da morte, que levavam os deportados para a sua viagem derradeira. Em Auschwitz I, vemos as horrendas cercas de arame farpado e o muro da execução, onde prisioneiros eram friamente fuzilados e onde hoje repousam preces e flores. Encontramos também duas das coisas mais terríveis e ignóbeis que o engenho humano foi capaz de criar para o mal: a câmara de gás e o crematório nazistas. Nas câmaras, o gás letal Zyklon-B era solto por um buraco no teto e, sem piedade, matava muitos em poucos instantes. Na câmara de gás de Auschwitz I, podemos ver as marcas de unhadas nas paredes, podemos ouvir nossos irmãos urrando de dor, gritando, clamando, pedindo misericórdia. Na sala do crematório, espécies de esteiras levavam corpo por corpo, como que deitados em leitos fúnebres, para queimarem dentro de grandes fornos. Aí se embrulham o estômago e o espírito, que se queda atônito, indagando sem qualquer resposta: “Por quê?”, “Para quê?”, e só podendo exclamar “Meu Deus! Misericórdia, Senhor!”.
Nessa cena, não podendo nenhum de nós alegar ignorância desses acontecimentos que inquinam nossa história, só posso encontrar como explicação – não justificativa – a nossa analgia nestes tempos defronte o fato que, infelizmente, presenciei em Auschwitz: pessoas tirando selfies, fazendo poses, sorridentes, dentro dos campos de concentração e extermínio, onde foram assassinados mais de um milhão de seres humanos. Selfies para recordar aquele gigantesco cemitério sem lápides e render muitas curtidas nas redes sociais. Selfies macabras, nem tanto para recordar os mortos de Auschwitz-Birkenau ou render-lhes tributo, mas para lembrar-nos o quanto nós mesmos estamos mortos.
(Rafael Ribeiro Bueno Fleury de Passos, nome literário Rafael Ribeiro Rubro, é advogado, escritor, poeta, cantor e mochileiro. Articulista do “Diário da Manhã”. Membro da Ovat – Organização Vilaboense de Artes e Tradições e da União Brasileira de Escritores – Seção Goiás. Delegado da Escola Superior de Advocacia na OAB Subseção de Goiás, diretor do Museu da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos, presidente do Gabinete Literário Goyano, da Comissão Permanente de Licitação do Município de Goiás e do Conselho Municipal de Turismo de Goiás – rafaelrpassos@hotmail.com)