Opinião

Ser brasileiro

Redação DM

Publicado em 4 de novembro de 2016 às 00:57 | Atualizado há 9 anos

O juiz apita. A bola rola. Não demora muito tempo, a galera grita:

– Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor!!!

Mas há de fato boas razões para chegar a essa conclusão? Como é possível medir esse sentimento? Há alguma possibilidade de racionalizar o orgulho de ser brasileiro? Certamente não alcançaremos essa resposta sem apelar para outras inúmeras perguntas.

De fato, nós somos um país muito bonito, é verdade. Praias, florestas, campos, cidades. Mas segundo a Organização Mundial do Turismo, nações em desenvolvimento como Tailândia, México, Marrocos, África do Sul, Indonésia, Vietnã, Bulgária, Tunísia, Argentina, etc, recebem mais turistas do que a gente. Qual motivo nos desabona, afinal? Não somos um país tão bonito assim como imaginávamos ou não sabemos acolher tão bem as outras pessoas?

Eis algumas respostas: o Brasil está entre os países com o maior número de assassinatos do planeta, tortura policial, mortes por bala perdida, violência contra jornalistas, contra ambientalistas, violência no trânsito. Será que dá pra sentir orgulho pela ausência de guerras quando alimentamos uma guerra civil interminável que mata mais pessoas por dia do que o confronto entre Israel e Palestina, e outras disputas bélicas ao redor do mundo?

E se você é mulher? Nós somos o quinto país que mais mata mulheres no mundo – em média, registramos uma denúncia de violência contra mulher a cada 7 minutos e um caso de estupro a cada 11 minutos e como apenas de 30% a 35% dos casos são registrados, é possível que a relação seja de um estupro por minuto! Nossas mulheres ocupam o topo do ranking das mais assediadas em todo o planeta – e não é por acaso que o Brasil, considerado tão acolhedor, é o segundo destino mais perigoso para as mulheres viajarem em todo o mundo. Nós simplesmente não sabemos lidar com elas…

Temos a economia mais fechada do G20, somos o décimo país mais complexo do mundo para fazer negócios, o líder no ranking global de encargos trabalhistas e de burocracia fiscal, e o quinto menos competitivo do planeta. O que devemos fazer? Saudar nosso ímpeto empreendedor ou questionar a nossa incapacidade de eleger políticos corruptos e desonestos que só nos prejudicam?

Bem, pelo menos nós somos considerados um povo criativo, certo? É verdade, mas também somos o terceiro país mais ignorante do planeta quando o assunto é o que sabemos sobre nós mesmos e o segundo com o pior nível de aprendizado em matemática básica, ciências e leitura.

Por falar em leitura, temos em torno de 50 milhões de brasileiros analfabetos ou analfabetos funcionais. Se reuníssemos todos eles e formássemos um país, ele seria o 28º mais populoso do mundo! Tem base? A verdade é que se analisarmos qualquer ranking de educação ao redor do mundo, estaremos em maus lençóis! Nós definitivamente não sabemos nos educar. Também pudera. Somos os líderes globais em violência contra os professores e o país com o pior salário do mundo na categoria. E isso para não falar dos nossos alunos: eles são os mais indisciplinados do planeta.

E toda essa indisciplina não nasce por acaso. Temos uma grande dificuldade em lidar também com as nossas crianças. Não bastasse o fato de sermos o terceiro país onde mais crianças e adolescentes são assassinados em todo o mundo, em média é de 29 mortes por dia, registramos ainda três queixas de abuso sexual infantil por hora, e apenas 10% desses casos são denunciados.

O governo, claro, é responsável por boa parte das nossas maiores vergonhas. Segundo um estudo do International Institute for Management Development publicado no início desse ano, temos literalmente o pior governo do mundo. Nós temos o judiciário mais caro do Ocidente, o sistema de saúde mais ineficiente do planeta e o Congresso mais caro do mundo em comparação ao PIB. Não bastasse, somos também o país que oferece o menor retorno dos impostos ao cidadão, ou seja, nós pagamos muitos impostos, e não recebemos de volta quase nada por isso.

A incompetência dos nossos políticos escancara outro grave problema: nós não sabemos nos organizar em sociedade. No índice que mede a qualidade da infraestrutura de um país, organizado pelo Fórum Econômico Mundial, nós ocupamos o vergonhoso 120º lugar em 144 posições possíveis, atrás de países como Etiópia, Suazilândia, Uganda, Camboja e Tanzânia. Só pra ter uma ideia, dos 29.165 quilômetros de malha ferroviária que o Brasil possui, apenas um terço é produtivo. Passados quase dois séculos, o número é equivalente ao período do Império no Brasil.

Nós não sabemos lidar sequer com o nosso cocô. Quase 100 milhões de brasileiros não possuem acesso à coleta de esgoto – e do esgoto coletado, apenas 40% é tratado. 17 milhões de pessoas não têm acesso à coleta de lixo e outras 4 milhões de pessoas não possuem sequer um banheiro em casa.

Por fim, no encerramento das Olimpíadas, teve baião, samba, frevo, e forró. Esse é nosso ponto mais forte? Qual a razão para não valorizarmos nossos artistas? Por que, diferente do que acontece em outros países, boa parte deles morre sem reconhecimento e na sarjeta? Qual o motivo para o nosso mercado cultural ser tão dependente dos patrocínios de ações do governo e não conseguem se sustentar sozinho? Será que realmente valorizamos a nossa cultura de verdade ou tudo não passa de coisa pra gringo ver?

O fato é que é preciso uma boa dose de estupidez para não identificar a nossa posição no mundo, reconhecer que temos um caminhão de problemas e que é parte da transformação do país encarar suas mazelas da forma mais racional possível.

Quanto dos problemas citados acima é culpa dos nossos governantes? Nós não confiamos nos nossos políticos, mas amamos a ideia de entregar boa parte das nossas decisões a eles. E isso é uma parcela infeliz do que somos. Nosso país foi construído com graves problemas institucionais, feridas que nos acompanham desde a colonização. Em geral, aceitamos a ideia que o governo tem um papel importante no combate às nossas grandes adversidades, da infra-estrutura precária às desigualdades sociais. O problema é que aparentemente essa ideia credita a ele continuar atuando gigante pela própria natureza, em setores injustificáveis, tributando e burocratizando como se não houvesse amanhã. E é ai que mora o perigo.

O fato é que geramos os incentivos mais perversos do mundo burocratizando cada aspecto da vida humana: transformamos o jeitinho na única maneira de sobreviver a essa grande repartição pública chamada Brasil. E é essa malandragem institucionalizada a mãe de todos os nossos problemas. É ela a responsável pelo desdém com que tratamos boa parte das nossas responsabilidades, pela cultura do “quero sempre me dar bem”, pela corrupção endêmica e apartidária, pela Lei de Gerson. Estamos todos reagindo aos incentivos que recebemos. A boa notícia é que também somos indiretamente responsáveis por eles.

Ou a gente corta todos eles na carne, ou a gente continua mantendo esse orgulho preso aos estádios de futebol…

 

(André Gustavo Fleury de Melo, escritor)


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