Simplificando o Direito
Redação DM
Publicado em 17 de janeiro de 2016 às 23:05 | Atualizado há 9 anos
Toda semana, às segundas-feiras, estarei publicando artigos jurídicos com uma linguagem que seja acessível a todos. Portanto, sempre que possível, meacompanhe por aqui. Estou aberto a sugestões e críticas que poderão ser encaminhadas ao meu e-mail que se encontra na minha descrição ao final do texto.
O assunto que iremos tratar hoje é sobre a relação da Lei de Cotas Raciais para Concursos e o Princípio da Igualdade. Para entender melhor, é importante analisar a Lei n.° 12.990 de 9 de julho de 2014, que estabelece a reserva aos negros de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos pu´blicos para provimento de cargos efetivos e empregos pu´blicos no a^mbito da administrac¸a~o pu´blica federal, das autarquias, das fundac¸o~es pu´blicas, das empresas pu´blicas e das sociedades de economia mista controladas pela Unia~o, entrando em vigor na data de sua publicac¸a~o e tendo a vide^ncia pelo prazo de 10 (dez) anos.
Após a entrada em vigor da referida Lei, percebeu-se uma discussa~o social, acade^mica e juri´dica quanto a` constitucionalidade desse dispositivo. Pois o mesmo, ao estabelecer a discriminac¸a~o legal para negros evidenciou reflexo~es sobre o racismo, preconceito e a própria noção de igualdade. Portanto, este tema possui grande importância social e juri´dica, sendo necessa´ria uma ana´lise mais pormenorizada.
A grande questa~o a ser tratada e´ se a Lei de Cotas Raciais para Concursos Pu´blicos fere ou na~o o princi´pio da isonomia (igualdade). Ela esta´ em conformidade com a Constituic¸a~o da Repu´blica Federativa do Brasil de 1988? E´ constitucional ou inconstitucional a Lei n.o 12.990/14 em face da igualdade juri´dica?
Ocorre que, para se verificar a constitucionalidade das cotas raciais para concursos pu´blicos e´ preciso identificar no que consiste o princi´pio da isonomia (igualdade) a` luz da Constituic¸a~o Federal. Apo´s a realizac¸a~o desta definic¸a~o, resta verificar a conformac¸a~o de sua legitimidade constitucional.
Ademais, e´ de grande importa^ncia esclarecer que esta tema´tica na~o envolve apenas noc¸o~es juri´dicas, pois se trata de um tema transdisciplinar. Logo, na~o se pode permanecer com um olhar cienti´fico apenas juri´dico, deve-se manter uma perspectiva holi´stica, ampla e panorâmica.
Quando se reflete sobre a igualdade alguns pontos precisam ser esclarecidos. Teoricamente, igualdade consiste no tratamento uniformizado a todos, independendo de quaisquer circunsta^ncias, sem nenhuma discriminac¸a~o. E´ tratar todos da mesma forma. Pore´m, e´ percepti´vel a impossibilidade de tratar todos da mesma forma. Ate´ porque cada ser humano possui suas particularidade e singularidades. Logo, a exigência de todos serem tratados com igualdade e´ uma utopia e intangi´vel.
Se fosse realizado um comportamento isono^mico, isto e´, tratar todos igualmente, da mesma maneira, de forma igualita´ria, isso geraria injustic¸a, pois existem pessoas que precisam ser diferenciadas das demais. Tal distinc¸a~o e´ devido a fatores bem diversos. Por exemplo, o tratamento a um idoso deve ser diferente de um jovem porque este possui mais forc¸a laborativa e menos debilidade anato^mica e funcional orga^nica que aquele, logo o “senhor de idade” precisa ter privile´gios na~o por causa de uma “inferioridade”, mas sim para proporcionar certa equidade no tratamento.
Portanto, quando se percebe que a igualdade e´ uto´pica, necessa´rio se torna o estabelecimento de um mecanismo de orientac¸a~o para as leis a fim de criar para^metros justos de aplicação da norma a fim de proporcionar o melhor para a sociedade. Por conseguinte, desenvolveu-se o princi´pio da isonomia ou da igualdade, na qual a lei deveria seguir. Ocorre que essencial e´ a conceituac¸a~o do que seria este princi´pio.
Atrave´s da delimitac¸a~o do significado e do sentido real da igualdade juri´dica e´ que se torna possi´vel uma melhor compreensa~o deste princi´pio e como ele deve ser aplicado no que tange as cotas raciais para concursos pu´blicos.
A Constituic¸a~o Federal de 1988 estabeleceu o princi´pio da igualdade no seu artigo 5°. Este princi´pio tambe´m chamado de isonomia, equiparac¸a~o ou paridade, consiste em tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, conforme ensinamento do filo´sofo grego Aristo´teles. Vale ressaltar a passagem cla´ssica de Ruy Barbosa, baseando-se na lic¸a~o aristote´lica: ” A regra da igualdade na~o consiste sena~o em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada a` desigualdade natural, e´ que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais sa~o desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e na~o igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criac¸a~o, pretendendo na~o dar a cada um, na raza~o que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos equivalessem.”
Por tanto, a populac¸a~o afrodescendente, as mulheres, as crianc¸as e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e peculiaridade de sua condic¸a~o social. E´ interessante ressaltar que ale´m do direito a` igualdade, tambe´m, surge o direito fundamental a` diferenc¸a. Portanto, deve existir o respeito a` diferenc¸a e a` diversidade, assegurando um tratamento especial.
É importante destacar que o reconhecimento na~o pode se reduzir a` distribuic¸a~o, porque o status na sociedade na~o decorre simplesmente em func¸a~o da classe. Igualmente, a distribuic¸a~o na~o pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos na~o decorre simplesmente em func¸a~o de status.
Um exemplo interessante e esclarecedor e´ de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que na~o pode conseguir um ta´xi. Neste caso, a injustic¸a da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a ma´ distribuic¸a~o. Por isso, e´ interessante destacar a necessidade de equilibrar as relac¸o~es proporcionando tratamento legal diferenciado entre negros e brancos, de maneira tempora´ria, para suavizar a discrepa^ncia existente entre as rac¸as. Da mesma forma, um negro brasileiro em um carro luxuoso normalmente e´ abordado pelas poli´cias e um branco na~o sofreria a abordagem policial, portanto, na~o tem nada a ver com a questa~o socioecono^mica e sim com questa~o de rac¸a desprivilegiada.
Enfim, a Lei de Cotas Raciais para Concurso não fere o Princípio da Igualdade porque ao realizar um tratamento diferenciado para os negros estará tratando de forma diferente indivíduos de realidades distintas. Negros e Brancos não são iguais. Os negros sofrem muito preconceito na sociedade brasileira. O acesso ao mercado de trabalho é desproporcional. A proporção racial de servidores públicos é bem desnivelada.
Do ponto de vista intelectual e de potencialidades brancos e negros são iguais. Porém, pela ótica sociológica, histórica e cultural os negros são distintos. É importante destacar que 70% dos mais pobres no Brasil são negros, apenas 25% dos mais ricos são negros e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) divulgou no primeiro semestre de 2015 que apenas 1,4% dos juízes do Brasil são negros.
Logo, nada mais justo que o Estado criar mecanismos de ações afirmativas para “desbranquiçar” a elite brasileira, bem como promover a acessibilidade de grupos menos favorecidos a fim de suavizar a grande diferença entre as raças.
(Agnaldo Bastos, advogado especialista em Direito Público, palestrante de alta performance nos estudos e professor especialista em Direito Constitucional.Críticas, elogios e sugestões enviar para o e-mail [email protected])