Só anda descalço quem quer… pensem em escudos!
Diário da Manhã
Publicado em 16 de março de 2017 às 02:34 | Atualizado há 8 anosHá pessoas que ouvem alguém dizer algo e, por alguma razão desconhecida, fica-lhes gravada na memória esperando apenas a oportunidade certa para sair, sem alteração. Isto passa-se frequentemente pelo que se deve ter em atenção e perceber o que se passa.
A minha mãe nasceu pobre. Andou descalça na neve e, talvez por isso, não goste dela. Apesar disto, ela saiu-se com uma frase, há uns tempos atrás, que me ficou na memória, talvez para escrever sobre ela.
Um dia chegou a casa, depois de comprar uns sapatos por dez euros. Quando passei por ela, atirou-me:
– Olha, acabo de comprar uns sapatos por dez euros. – Num tom desdenhoso, dobrada sobre si mesma, descalçava-se com a dificuldade própria das pessoas idosas. – A outra é que tinha razão! Por este preço, só anda descalço quem quer.
Pensei em não dizer nada. Mas, como percebi que repetia o assunto tentando conhecer a minha reação, tive de dizer-lhe que dez euros é muito dinheiro para algumas famílias. Que para pagar dez euros por uns sapatos, (pois não podemos andar descalços, porque a sociedade não vê com bons olhos tal situação), muitas famílias tinham de retirar esse dinheiro destinado a gastos com outros aspetos da vida familiar (um pouco à semelhança do que se passa com o estado que, para tapar um buraco orçamental, abre outro).
Pensou um pouco e não levou muito tempo a concordar comigo. Vi como se retraía perante a sua mal calculada frase. Creio que aprendeu a lição e, nos tempos mais próximos, não vai repetir essa, ouvida no local que frequenta, e da boca de alguém que, aparentemente não dedica muito do seu tempo à reflexão profunda e alargada sobre os factos da vida.
O problema não está só na pessoa que a diz pela primeira vez. Está também naquelas que a repetem sem refletir sobre o que ouviram. Este é um fenómeno que não começou nem vai terminar aqui. O problema de muitas pessoas (não sei se a maioria) é ouvir e memorizar o que escuta como um dado adquirido, como um dogma. Mas é também um risco que todos corremos nalguma fase das nossas vidas. Ninguém está livre de que lhe aconteça algo assim, pelo que devemos estar atentos. Afinal, a vida não é constituída por dogmas, muito longe disso. Aqueles só existem para as pessoas pouco dadas a pensar. Talvez, por isso mesmo, esses dogmas, essas ideias adquiridas que formam a mentalidade coletiva, leve tanto tempo a mudar (cerca de 100 anos segundo as estimativas de alguns). E a adesão a estes dogmas é transversal às classes sociais, culturais… o que dá que pensar. Como é possível que pessoas, que tiveram acesso a uma educação superior, estejam agarradas a dogmas que não têm pés nem cabeça? E mais, porque é que fazem questão de dar entrevistas defendendo isso mesmo e passando uma ideia de estupidez cultural e científica? Leva a pensar que um curso superior não dá inteligência a quem não a tenha.
Bem, como já disse acima, este estado de inconsciência coletiva é um fenómeno que parece querer perpetuar-se nos tempos. Talvez isso explique porque é que a história humana é cíclica. Como costumo dizer, parece que há poucos humanos a puxar a corda para a frente e muitos a puxá-la no sentido contrário.
Uma colega minha, este ano, quando pedia aos alunos que pagassem um euro para ver uma peça de teatro, e me preguntava se já tinha o dinheiro de todos, respondi que não obrigava os alunos que não queriam, pois não era dona do dinheiro de ninguém. Respondeu-me que “sinceramente, é só um euro!”
Quando isto se passa nestes aspetos mínimos o que se passará a outros níveis por esse país fora e durante quanto tempo mais vai este fenómeno resistir? Provavelmente, enquanto houver pessoas que pagam para não pensar…
(Fátima Nascimento, professora, formada em línguas e literaturas modernas)