Sobre gaiolas para pássaros e humanos
Redação DM
Publicado em 11 de julho de 2015 às 22:24 | Atualizado há 10 anos
É da pena genial de Rubem Alves esta fantástica história: a menina e o pássaro encantado.
Uma das inúmeras joias que este extraordinário escritor nos deixou é a história de uma menina que tinha um pássaro encantado, que vivia numa gaiola, mas com a portinhola aberta.
Quando ele desejava, saía e voava para longe, para lugares distantes, mas sempre voltava. E voltava com as penas brancas pelo gelo das montanhas que visitara, ou douradas, pelo fogo do sol de regiões dominadas pelo calor de seus raios.
E lhe contava histórias e mais histórias dos lugares por onda andara.
Mas toda vez que partia, a menina chorava. Até que um dia engendrou um plano. Construiu uma belíssima gaiola de prata, onde trancou o pássaro e dormiu feliz.
Mas a ave encantada deplorava a atitude da menina. Não esperava por isto, ele que a amava tanto.
E suas penas foram ficando velhas e sem brilho. Não tinha mais histórias para contar a sua querida e não cantava mais.
Até que amenina não suportou mais o sofrimento da ave amiga e abriu a portinhola deixando-a voar para longe…
Não se entristeça, querida menina. Eu voltarei, prometeu-lhe a ave encantada. E cumpriu o que prometera.
No meu pequeno recanto rural, vejo e ouço aves de diversas qualidades: sabiás, canários, periquitos, pombas do bando, rolinhas, tucanos, pequenas garças, saracuras, seriemas, pássaros pretos, tucanos, gralhas, maritacas, melros, tico-ticos, colibris e uma enorme variedade de outras, cujos nomes nem conheço…
Nunca me passou pela cabeça prendê-las em gaiolas para poder ver mais de perto ou tocá-las, entendendo, sempre, que a sua liberdade é exatamente o que as torna belas e é com ela que as avoantes enfeitam a natureza, pousadas no alto das árvores ou cruzando o céu em seus maravilhosos voos.
Um dia destes, todavia, peguei-me com o insistente pensamento de construir gaiolas. E construí, e as coloquei em lugares diversos, em árvores variadas, em pontos estratégicos. Queria realmente ver nelas as aves que diviso todos os fins de semana atravessando o céu.
Não, não me censurem assim, sem uma oportunidade de defesa. Calma! Não estou sendo contraditório!
É que, às vezes tenho visto chuvas fortes caindo naquela região. Fortes e demoradas. Fiquei pensando se as aves conseguiriam, pousadas nas árvores, se abrigar completamente.
Sem saber se sim ou não, na dúvida, resolvi então construir as tais gaiolas. Gaiolas especiais. Têm a cobertura, têm o piso, têm aquele balançozinho onde as aves gostam de ficar e, eventualmente, pequena vasilha para alimento.
Mas são totalmente abertas. Na frente, atrás e dos lados, durante os temporais as aves podem ali se abrigar, saindo quando lhes for conveniente. Servem apenas de refúgio temporário e mais seguro durante as intempéries.
E já tive o prazer de ver algumas destas avezinhas prazerosamente empoleiradas em suas gaiolas falsas, certas de entrarem e saírem quando o desejarem, no exercício sagrado de sua liberdade.
E de modo quase que instintivo, num imperativo íntimo absolutamente impossível de ser obstaculizado, fiquei pensando nas gaiolas construídas por e para seres humanos.
Vivemos engaiolados, proibidos de desfrutar normalmente de nosso habitat, de nosso ambiente…
E sei que todos já estão visualizando as casas e apartamentos em que as pessoas vivem trancadas, inseguras, com medo, ficando o menor tempo possível na rua, vivendo em trajetos diretos do trabalho para casa e vice-versa, ante os enormes riscos que afetam suas vidas pela violência que campeia solta, de dia e de noite.
Mas não é bem aí que desejo chegar. Esta situação é evidente demais e percebida por todos.
Refiro-me a uma outra situação que vai se insinuando em nossas vidas, quase que imperceptivelmente, mas com um poder letal.
Voltemos ao conto de Rubem Alves. A menina construiu uma gaiola toda de prata e nela prendeu sua ave encantada. Mas nem a riqueza da gaiola mudou a sua finalidade, nem o encantamento do pássaro conseguiu neutralizar seu efeito maléfico.
Estamos construindo quase que imperceptivelmente gaiolas de ouro para humanos, para nós.
E nelas ficamos aprisionados, e como o pássaro encantado daquela menina, vamos perdendo o brilho das penas, o encanto da fala mansa e cordial, das histórias belas a serem compartilhadas, a beleza da vida.
Lamentavelmente, a cada dia mais, nos encerramos em nossas gaiolas douradas do preconceito, pelo qual nos achamos superiores e não podemos admitir as diferenças. Gaiolas da pretensão espiritual, com as quais nos superpomos ao comum das pessoas, entendendo-nos os únicos portadores da verdade, não admitindo a sinceridade de outra crença, nem a misericórdia divina, que, como o sol, ilumina e aquece a todos, bons e maus, sem distinção. Vemo-nos em plano superior, a julgar vivos e mortos. Gaiolas de ouro de uma doentia e orgulhosa vaidade que nos promove, com sussurros noturnos, a melhores, mais qualificados e grandemente distanciados dos outros, que sequer chegam aos nossos pés. Gaiolas douradas de nossas riquezas e de nosso poder que nos impedem ver a miséria e a fraqueza do nosso próximo, quanto mais senti-las.
Gaiolas de ouro que nos isolam da grande verdade que são a transitoriedade das coisas desta vida e que nos levarão a ouvir, na hora do sem remédio, como na parábola do Cristo, a irremediável advertência dirigida ao homem que ajuntara fortuna enorme de abundantes colheitas e com ela queria saciar sua alma: Tolo, esta noite te pedirão a tua alma. E o que tens preparado, para quem será ?
(Getulio Targino Lima, advogado, professor emérito (UFG), jornalista, escritor, membro e atual presidente da Academia Goiana de Letras. E-mail: [email protected])