Sobrevivente sou da síndrome invisível
Redação DM
Publicado em 22 de dezembro de 2016 às 01:38 | Atualizado há 9 anosMuitas pessoas indagam: “Que doença o Silvio Sous tem mesmo, se o vejo normal!?” A resposta poderia ser medíocre tão quanto a pergunta, mas já que uma réplica direta a esses curiosos transtornaria complicação absurda, resolvi escrever e publicar em diário de grande circulação para assim ficar gravado e bem grafado.
Bom, a Síndrome Pós-Pólio (SPP) é doença rara do neurônio motor de caráter degenerativo e progressivo. Não se conhece totalmente a etiologia, mas a causa mais aceita é a degeneração das unidades motoras remanescentes. Trata-se de um distúrbio que costuma acometer indivíduos que tiveram poliomielite agudae quedesenvolvem um conjunto de sintomas anos após, caracterizando-se por fraqueza muscular e fadiga anormal.
Este quadro não se estabelece em decorrência da reativação do poliovírus da poliomielite, mas, em consequência do desgaste causado na utilização dos neurônios motores situados próximos daqueles que foram mortos. Isso é resultado da tentativa de compensação por parte do organismo, uma vez que os neurônios sobreviventes emitem ramificações para inervar a musculatura comprometida pela doença.
Somente no ano de 2011, a Síndrome Pós-Pólio foi inclusa pela Organização Mundial de Saúde – OMS no Catálogo Internacional de Doenças (CID 2010) em função de pesquisas feitas por um neurologista brasileiro da Unifesp, o doutor Dr. Acary S. Bulle Oliveira e sua equipe. Dessa forma, não há uma estatística precisa com relação ao número de portadores desta síndrome no Brasil em que a ala médica desconhece os procedimentos adequados, e alguns demonstram desinteresse pelo assunto, embasados de que a poliomielite fora erradicada no Brasil em 1989.
As manifestações clínicas podem surgir em pacientes que apresentaram paralisia flácida, bem como nos que não apresentaram nenhuma sequela visível. Os sintomas gerais são nova fraqueza progressiva, ansiedade, dor articular, fadiga intensa, dor muscular, distúrbio do sono, intolerância ao frio, câimbra, desvio de coluna, aumento de peso, fasciculação (tremores e contração), nova atrofia, cefaléia, transtornos mentais, depressão, problemas respiratórios, disfagia (dificuldade de deglutir), dificuldades na fala e flacidez nos músculos.
Não existe nenhum teste sorológico, enzimático, eletrodiagnóstico ou biópsia que possa diagnosticar com exatidão a doença. Também não há tratamento específico ou medicação eficaz. O diagnóstico é feito com base nos sinais e sintomas apresentados pelo paciente. Mas, a eletroneuromiografia é um exame útil na exclusão de outras patologias degenerativas que apresentam quadro clínico similar.
A abordagem deve ser multidisciplinar, abrangendo alongamento, exercícios aeróbicos brandos, exercícios de resistência com baixa carga, orientação nutricional, uso de apoios ou dispositivos externos aplicados ao corpo (bengala, muletas, andadores, coletes, entre outros), medicamentos para controle da dor e ansiedade. Além disso, é de extrema importância que o paciente faça fisioterapia e hidroterapia para auxiliar na manutenção da função muscular.
Os acometidos do mal da síndrome invisível estão proibidos de fazerem qualquer atividade física severa. No meu caso particular, um ambientalista nato, amante do esporte radical e da natureza, levando em conta que eu corria, nadava, praticava rapel, remava, era explorador de cavernas, pedalava 60 quilômetros por dia, enfim, simplesmente abandonar a vida de grandes aventuras em função de uma síndrome que nem os médicos consideravam doença, foi piração total ao receber este diagnóstico!
Destaco aqui em detalhes os principais sintomas que perseguem os polioamigos:
Fraqueza muscular – a nova fraqueza muscular (com ou sem atrofia) pode envolver os músculos afetados ou não pela poliomielite.
Fadiga – é o mais debilitante sintoma decorrente da fadiga geral e da muscular. Tenho a sensação de exaustão e de capacidade diminuída para realizar algum trabalho físico ou mental do dia a dia que a princípio parece bem simples. Considerada como diminuição de energia, indisposição para sair de casa, dificuldade em realizar trabalhos repetitivos, cansaço excessivo, sonolência, falta de atenção e esquecimento provocada por atividade física intensa e pelo estresse. A fadiga geral decorre de mudança considerável do nível de energia física e disposição mental após pequena atividade, que aparentemente não requer muito esforço. Aliado a essas características, acompanham fraqueza, fluxos de calor e frio e sudorese. Entre as causas inúmeras que a fadiga leva, destaco o comportamental psicológico em que quem tem SPP conduz a vida exigindo muito de si mesmo com perfeccionismo e expectativa de grande realizador. A fadiga muscular é o declínio ou falta de resistência por causa do esforço. É descrito como sensação de peso nos músculos, aumento de fraqueza física e perda de força durante exercício.
Dores – didaticamente dividida em dor pós-pólio, dor por excesso de uso e dor biomecânica. Dor pós-pólio nos músculos e nas articulações é caracterizada por cãibras ou fasciculações ou ainda sensação de formigamento. É exacerbada por atividade física, estresse e por baixas temperaturas. Dor por excesso de uso dos tecidos, tendões, ligamentos. Dor biomecânica apresenta-se nas degenerações articulares ou na compressão do nervo causado por microtraumas em razão de forças exercidas anormais motivado pelas estratégias desenvolvidas para se locomover.
Alteração do sono – este é um índice elevado entre os polioamigos. A eficiência do sono é diminuída e há despertares frequentes. Uma das causas são as obstruções das vias aéreas superiores que podem ocorrer muitas vezes durante a noite, resultando em sono fragmentado. Os riscos são de hipertensão arterial, infarto, insuficiência cardíaca e acidente vascular cerebral (AVC). Existem ainda as contrações musculares espontâneas e os movimentos periódicos dos membros, evidenciado por episódio de contração involuntária e repetitiva. Os membros se movem ou se contraem durante a noite.
Síndrome das pernas inquietas – caracterizada por uma necessidade irresistível ou urgência em movimentar as pernas associadas a sensações desconfortáveis que ocorrem nos membros inferiores. Essa sensação é descrita como comichão, alfinetadas, formigamento ou incomodo e ocorrem em situação de repouso das pernas e predominam quando se vai dormir. Tais sintomas podem causar dificuldade para iniciar e manter o sono, ocasionando insônia e consequência no dia seguinte como cansaço, sonolência irritabilidade, dificuldade de concentração. Ainda permanece desconhecido o mecanismo pelo qual os sintomas de síndrome das pernas inquietas acontecem em quem tem SPP.
Intolerância ao frio – é a dificuldade em conviver ou tolerar baixas temperaturas ou mesmo frescas e frias. O frio incomoda mais no membro mais afetado pela poliomielite e ocorre dor, diminuição da função e da força do membro afetado.
Insuficiência respiratória – as pesquisas técnicas e as revisões literárias apontam que esse sintoma afeta mais quem usou ventilação mecânica. Mas, ainda não fui diagnosticado eficazmente, descartando tal situação. A verdade é que não tenho certeza se os problemas respiratórios que tenho são em função da ansiedade e de outros fatores já descritos ou por outra situação decorrente da perda motor.
Disfagia – transtorno de deglutição em que há predisposição ao déficit na motricidade para falar e deglutir.
Disastria – transtorno motor da fala, dificuldade de articular as palavras, causado por alteração neurológica que podem resultar em paralisia, fraqueza ou incoordenação dos músculos dos lábios, língua, palato mole, laringe e ou dos mecanismos da respiração.
Sexualidade e intimidade – não há interferência direta na fertilidade. Algumas medicações sintomáticas podem afetar a libido, a ereção e o orgasmo. O principal é em relação à fraqueza que por motivo de mobilidade pode afetar o desempenho. As barreiras físicas podem criar medo em lesionar o parceiro e inibir desejos.
Uma das questões não valorizada pelos profissionais da saúde é levar em conta a experiência de vida dos pacientes com pólio e com SPP. Os polioamigos se deparam com a necessidade de lidar com novos sintomas, deficiências e limitações. Os sintomas forçam a recordar e examinar situações vividas anos atrás do histórico de poliomielite. Por isso os sintomas psicológicos como depressão, ansiedade e estresse crônico interferem diretamente na qualidade de vida.
A poliomielite me isolou de tudo e de todos. O fato de viver separado foi um processo doloroso. Afastado dos amigos, dos colegas de aula quando criança e até dos familiares. Essa vivenciação trouxe um sentimento de abandono e de desamparo muito dolorido. E foi difícil voltar à vida depois de longo período de sofrimento e aceitação de mim mesmo e se deparar com desafios impostos pela minha condição física, além das barreiras impostas pela sociedade. Apesar disso, tive êxito na carreira profissional e na vida de um modo geral, buscando sempre independência e autossuficiência como forma de provar minha superação em relação às minhas limitações e tornando-me mais aceitável pela sociedade.
Porém, apresentar os novos sintomas, psicologicamente é devastador. Porque eu acreditava que isso tinha ficado no passado, que eu já havia vencido esse luta. A reação é de raiva, medo, angústia e de confusão. O sentimento de medo está presente por saber que posso prever minha condição física e capacidades futuras, principalmente a perda da independência, habilidades físicas e mudança profissional, outrora estável. Sem dizer da peregrinação diante dos médicos por anos e receber aquelas frases irônicas: “Você não tem nada”, “Você é perfeito.” “Você é saudável”, “Sua saúde é de ferro”. “Você precisa jogar bola, correr, nadar, andar de bicicleta que atividades físicas são ótimas pra você”. Enquanto que na verdade, eu não poderia ter usado em excesso os meus músculos.
Devido à erradicação da poliomielite no país, poucos profissionais de saúde têm tido o treinamento ou a experiência adequada em tratar da síndrome. A maioria tem conhecimento limitado e às vezes prejudicam mais do ajudam na orientação.
Cada dia que passa, eu sinto mais dificuldade em executar minhas atividades diárias em função da nova fraqueza, da fadiga e da dor. Quase sempre relacionados com mobilidades no tocante à marcha e subir escadas. O estilo de vida mudou radicalmente e tende a piorar. Atividades outrora realizadas sem nenhum problema parecem que são intermináveis. Outra situação complicada enfrentada é em relação aos familiares que deveriam ser orientados e também se orientarem. Amigos, pais, mães, filhos, esposas, a maioria apena sabe que temos tal doença, mais muito superficialmente. Por isso temos nos apegado mais aos nossos polioamigos que parecem nos entender bem mais por passarem pelos mesmos problemas.
Não há qualquer pesquisa que demonstre eficácia de medicamento no processo de neuroproteção ou recuperação funcional. Os medicamentos que tomo são apenas para minimizar a dor e ansiedade. Eu sei que grande parte das orientações práticas poderiam ocorrer e decorrer de maneira bem simples, mas para isso deveria constar na lista um grande número de envolvidos, principalmente para realização dos nossos desejos. As orientações médicas, dos amigos e dos familiares deveriam partir das nossas queixas, considerando que não há como padronizar o tratamento. Mas, não tenho queixado para ninguém por opção e puro egoísmo, apenas suportado com muito silêncio as dores e os incômodos psíquicos e físicos.
O neurofisiatra orientou uso de órtese para o pé esquerdo, uso constante de bengala, evitar escadas e ainda, quando passear nos shoppings, usar cadeira de rodas. E nunca andar uma distância maior que duas quadras, sempre optando pela cadeira de rodas. Parece assustador, mas não sei o que me aguarda daqui a cinco ou dez anos, se uma nova prótese/órtese ou cadeira de rodas permanente. Tendo em conta que sou sobrevivente e que ainda luto para sobreviver, cada segundo de vida vale dois quilos de ouro. Todavia tengo la vida.
Pronto! Não me pergunte mais o que é Síndrome Pós-Pólio.
(Silvio Sous, pessoa com deficiência, ambientalista, jornalista, músico e poeta ignorante por conta própria)