Opinião

Sociedade artificial, pessoas descartáveis

Júlio Nasser

Publicado em 12 de abril de 2017 às 02:15 | Atualizado há 8 anos

A sociedade atravessa uma fase de extrema transformação, com a adoção de novos hábitos, fatores que geram conflitos de ordem existencial, o que contribui para com o surgimento de novos paradigmas nas relações interpessoais. Essa questão é investigada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra “Amor Líquido, Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos”, de como nossas relações tornam-se cada vez mais flexíveis, gerando níveis de insegurança sempre maiores, uma vez que damos prioridade a relacionamentos em “redes”, que podem ser iniciados e desfeitos com muita rapidez, frequentemente sem envolvimento algum. Parece que, nessa “modernidade líquida”, seguimos um script e as relações não são mais o envolvimento sentimental entre pessoas, mas um roteiro previamente imaginado e destinado a servir como espetáculo que deve ser compartilhado e, rapidamente, descartado. Em nenhuma outra época as pessoas viveram tanto a experiência de uma ubiquidade existencial – o real e o virtual – como a vivem atualmente, com a intensificação das redes sociais na internet, onde tudo deve ser compartilhado. Essa sociedade da informação, paradoxalmente, vem diminuindo a sua capacidade de interação, de comunicação, de sociabilidade, de demonstração de afeto, de atenção ao próximo. Informação e espetáculo narcísico caminham para mesclarem-se em um mesmo sentido semântico. O “diálogo” virtual, através dos aplicativos dos telefones celulares e de redes sociais, vem substituindo o contato pessoal, a interação social, o diálogo falado e, em consequência, está havendo uma supervalorização da imagem, uma mecanização e mercantilização das relações (ou contatos efêmeros). As pessoas estão se transformando, em relação ao outro, meros objetos de consumo rápido, imediato e descartável. Um encontro sexual é decidido em poucos minutos pela rede e os interessados não precisam digitar muitas palavras para combinarem como serão os detalhes e o que será “servido” no encontro. A solidão e o vazio parecem ser um dos grandes motivos para o desejo pelo espetáculo, pelo exibicionismo exacerbado, onde até (ou principalmente) a intimidade passa a ser objeto de compartilhamento em rede. O ato sexual, atualmente, parece seguir um roteiro padrão. Tudo é insipidamente previsível, tudo parece seguir a uma lógica de consumo, inclusive a adoção de padrões estéticos. Numa noite solitária, saio de casa e vou a um bar ou restaurante. O ambiente está lotado de mulheres bonitas. Meus ímpetos masculinos impelem-me para uma noite de prazer, afinal, é possível que num ambiente assim flua um relacionamento duradouro, como bem cita a escritora Catherine Jarvie: “seus olhos se cruzam na sala lotada; o brilho da atração está lá. Você conversa, dança, ri, compartilha um drinque ou uma piada, e quando se dá conta um dos dois pergunta: ‘na sua casa ou na minha?’ Nenhum dos dois está a fim de nada sério, mas de algum modo uma noite pode virar uma semana, depois um mês, um ano ou mais”. Naquele ambiente, parece que todas as mulheres combinaram o mesmo estilo de vestir. Tudo é muito igual. Aproximo-me de uma, aleatoriamente, afinal se parecem tão iguais… A aparência mais se parece um rótulo, uma embalagem condizente com o desejo de agradar ao seu consumidor. Apesar de bem jovem, parece ter sido totalmente alterada, ajustada aos padrões de consumo ditados pelo mercado. Os cabelos com cores e efeitos quimicamente alterados. Os seios, quase inteiramente expostos, devidamente enrijecidos e avolumados com silicone. A roupa dever deixar em evidência aquilo que realmente interessa: o corpo malhado, musculatura rígida. O conjunto mais parece um ser em metamorfose, que se transmuta em algo que continua sendo mulher, mas que deixa de ter feminilidade. Tudo, sinais e gestos, devem estar devidamente padronizado. E ela se encaixa perfeitamente às exigências de consumo. A “selfie”, ato de fotografar a si mesma, via de regra com aparelhos de telefones celulares, também obedece ao mesmo ritual metódico: um sorriso forçado alternado pelo gesto feito com os lábios, em forma de biquinho ou, mais precisamente, em formato de ânus que está em atividade ou esforço de suas finalidades orgânicas. A tatuagem também é um adorno, um sinal que a atualiza, que a moderniza, que a ajusta às exigências da sociedade do consumo. Dialogar é enfadonho, isso pode ser feito pelas redes sociais, virtualmente. Qualquer coisa que se faça sem ser sexo é perda de tempo, portando, vamos direto o que interessa para que, o mais rapidamente possível, possamos nos despedir, livrar-nos um do outro. Encontros pessoais só mesmo para a satisfação imediata do desejo, nada mais. Portanto, sejamos práticos e objetivos. Finalmente, o ato sexual em si, que transcorre fervoroso, mas com um sentimento de que falta algo. Os gemidos, os gritos, as depravações bradadas com a evolução do êxtase, chegando-se ao ápice com o gozo, não deveriam ser atos solitários, restrito ao casal, limitado àquele ambiente fechado. Para ela, ávida pelo espetáculo, aquele momento de orgasmo deveria ser compartilhado. Que graça teria ela ter tido todo aquele prazer e não poder compartilhar? Ninguém iria acreditar se ela simplesmente contasse. Tudo bem, não posso ser um desmancha prazer, pode gravar, mas por favor não capte a imagem do meu rosto. Afinal, a sociedade do espetáculo exige que tudo seja publicado, exposto, exibido. Você só será uma pessoa verdadeiramente feliz, bem-sucedida, realizada e feliz se provar isso. E a maneira moderna de provar que é tudo isso não é necessariamente sendo tudo isso, é demonstrar isso, ainda que seja falso, encenado. Mas deve ser compartilhado, inclusive, ou melhor, principalmente, o sexo, a intimidade. Por sinal, o termo “intimidade” vem sofrendo, como diz Bauman, substancial e radical significação semântica. Nada tem se tornado mais público do que a privacidade, “tudo o que é privado agora é feito, potencialmente, em público – e está potencialmente disponível para consumo público”. Desta forma, no afã do espetáculo, do desejo incontido de autoafirmação, o sexo não é mais um ato restrito aos parceiros que o praticam. Ele é, ou deve ser, uma performance que denota uma satisfação de interesse coletivo e que, portanto, deve ser divulgado. Privacidade, intimidade, anonimato, direito ao sigilo, tudo isso é deixado de fora das premissas da sociedade de consumidores. Todos nós somos consumidores, consumimos uns aos outros como se fossem mercadorias; uma vez que somos mercadorias, somos obrigados a criar uma demanda de nós mesmos. Essa demanda narcisista e hedonista deve ser compartilhada em redes. Voltando ao ato sexual, ao final, a sensação foi a de que transei como uma avatar. De um lado, a mulher real, sofrida, angustiada com a falta de sentido em sua vida, que precisa criar uma espécie de “second life”, um personagem das redes sociais, sempre feliz, num mundinho imaginário onde tudo é artificialmente perfeito e todos os seus atos, principalmente a intimidade, devem ser compartilhados para satisfação do espetáculo do consumo. Aquela “fast food” sexual demonstrou-me que as relações modernas devem disponibilizar uma espécie de botão com a função “deletar”.  As pessoas estão fazendo isso umas com as outras. Consomem, depois descartam. Os “objetos” de desejo são facilmente transformados em refugos. Os produtos de consumo atraem, os refugos repelem. Depois do desejo vem a remoção dos refugos. A decepção do desejo satisfeito. No dizer de Bauman, “é, ao que parece, como forçar o que é estranho a abandonar a alteridade e desfazer-se da carapaça dissecada que se congela na alegria da satisfação, pronta para dissolver-se tão logo se conclua a tarefa”.

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