Brasil

Taciana

Redação DM

Publicado em 17 de março de 2016 às 01:39 | Atualizado há 9 anos

Na estação ditosa da minha adolescência, eu via o mundo com o deslumbramento feliz do artista que espraia os olhos pelos painéis coloridos da natureza, tentando furtar para a tela virgem um pouco daquele espetáculo maravilhoso de cor, beleza e luz; eu supunha o mundo tão belo como uma ária de Donizeth que conheço, e pensava que os homens fossem todos venturosos na fraternidade e na harmonia dos sentimentos superiores; enfim, para não me alongar muito, eu acreditava que as criaturas se queriam muito, que as crianças fossem adoradas e respeitadas como as adoro e as respeito; achava mesmo que não havia lugar melhor para se viver que aqui na terra, e quando me falavam de crimes, de guerras, atritos, roubos e outras coisas mais, eu ria na minha estupenda ingenuidade e não cria em nada daquilo.
Mas o tempo foi passando e, com ele, fui conhecendo a realidade decepcionante: o cenário dos homens não era aquele paraíso venturoso que só pude encontrar nos caminhos floridos da minha imaginação! Era um arsenal de guerras, uma arena retendo feras insaciáveis, um antro de crimes e uma sucessão interminável de escabrosidades inqualificáveis, um inferno bem pior que o de Dante, pois lá as almas somente se penitenciavam, sofriam e resgatavam o “ceitil por ceitil” dos seus atos criminosos; aqui, os homens não apenas padecem como se matam; e sofrem todos, crianças, velhos e gente jovem, bons ou maus, e por mais expiem pelos erros praticados, mais insistem em se litigarem, em se destruírem!
…Essas observações aparentemente pessimistas, senhores, em virtude da mais cruel e desumana agressão que acabei de tomar conhecimento; neste momento, por isso mesmo, tenho o coração amargurado e a alma em conflito: eu não creio no mal; mas se ele existe, como o notamos a campear por aí, insisti em crê-lo transitório, produto exclusivo da ignorância, pois o homem um dia se remirá, graças ao valioso concurso da dor, do tempo e da maravilhosa verdade que é a pluralidade das existências; então, o mundo será realmente aquele clima de felicidade, sorrisos e gloriosas esperanças com que eu sonhava, quando comecei a caminhar por ele, passando embora pelos recantos de flores perfumosas e luarejantes, mesmo porque não sei desacreditar do Melhor Amigo dos homens, que declarou, encarnando toda esperança de Deus, suntuosamente confiante na recuperação total das criaturas, e convicto da vitória final e eterna do bem: “Não haverá, nunca!, de se perder uma só ovelha do meu rebanho!”
Não sei se lhes conto o que pretendia. É deprimente demais! Todo esse preâmbulo para lhes relatar um caso escabroso ocorrido em Anápolis, a ponto de fazer-me chorar na solidão da minha angústia e deixar-me de alma esfarpelada de estupor. Tentarei…
Cassiano sentiu-se mal e, presto, buscou o leito. Seu coração cansado parecia não querer resistir à enfermidade que, aos poucos, o vencia; deitou-se na cama pobre mais limpinha, escutou a algaravia dos três filhos brincando na sala contígua ao quarto, respirou fundo tentando repletar os pulmões do ar que lhe faltava, suspirou doridamente, fechou os olhos – e morreu…
A esposa desesperou-se no momento, no entanto, horas depois, estava um tanto mais conformada; os três filhos, dois meninos e a caçula, uma garota de quase quatro anos, Taciana, foram conduzidos para a casa da avó, a fim de não sofrerem tanto, vendo morto o pai que, embora velho, casado em segunda núpcia, muito trabalhara para lhes dar o sustento diário.
Não foi preciso que completasse um ano após o falecimento de Cassiano, para que sua mulher se amasiasse com Antônio de tal, apelidado de “o anta” que ali vivia ociosamente, ora maltratando as crianças, ora exigindo da mulher muito sacrifício para que, além do sustento da família, pusesse dinheiro em suas mãos para as bebedeiras habituais; um dia a amante estava como sempre acontecia, lavando roupa num córrego a regular distância, quando Antônio “anta” despede os dois meninos de casa, mandando-os esmolar pela rua e, sozinho com a menina de quatro anos, uma criancinha raquítica e sofrida, famélica e amedrontada, a estupra criminosamente, malgrado os gritos e choros da criança, interrompidos pela sua mão monstruosa que lhe tapava a boca, tentando impedir a bulha, o que não o conseguiu de todo, pois as vizinhas, ouvindo os gritos da pequena, acorrem para a sua casa, encontrando Antônio em fuga pela janela e a garotinha violentada, sofrendo os horrores de uma hemorragia perigosa, sendo prestemente conduzida pelas mulheres ao Pronto Socorro, onde apenas recebera alguns curativos de um dia para outro; denunciado à polícia pelas vizinhas, contrariando os propósitos da mãe da vítima, Antônio foi preso, levado a julgamento e condenado a dez anos de reclusão, sob o impressionante silêncio de Aquila, a mãe de sentimentos estranhos que não levantara a voz sequer para defender a filha.
Agora no lar de Taciana, a pequenina flor desfeita, a vida se tornara um tormento: a genitora não a suportava, talvez por ser a pequena razão pela qual seu amante permanecia condenado pela justiça; ao longo de alguns meses a criança ficara de tal forma traumatizada que não aceitava a presença, em casa, de homem algum; andava coxeando e sob o impacto de sustos sucessivos; quando dormia, padecia terrores noturnos e acordava aos sobressaltos, gritando estentórica, e chorando muito; quem poderia supor, senhores, que uma linda criança, um anjo descido das alturas edênicas, mais inspirando um clima de pureza, espiritualidade e alegria, pudesse encontrar, à sua frente, um ser monstruoso, todo o antônimo do respeito e da bondade, se esse verdugo, em seu lar, parecia ser o pai a prover-lhe a casa, a mesa e o coraçãozinho tão necessitado de afeto, proteção e amor; como poderia a angélica pequena temer alguém que era tudo para a sua querida mãe? O mundo, senhores, me surpreende, me deixa estuporado e, muitas vezes, dominado de revolta e indignação, embora eu não consiga apesar de tudo isso, descrer um só instante da completa redenção dos homens.
Os irmãozinhos de Taciana estão no momento habituados a escutar, pelas ruas, repetidas vezes, a dramática história de sua irmã; e em seus rostinhos se nota a indisfarçável tristeza que os domina, principalmente pela timidez com que se apresentam juntos aos seus coleguinhas de rua…
Na manhã de certo dia os três irmãozinhos acordaram e não viram a mãe se preparando para ir ao trabalho, lá no córrego; ela saíra naquela manhã e as primeiras estrelas já principiavam a salpicar a abóbada celeste, sem que a presença materna voltasse a se registar; as crianças estavam famintas e preocupadas: –Cadê a mamãe? Indagava Taciana, choramingando, levando a costa da mãozinha nos olhos. “Não sei.” Respondia Walter, o mais velho, de 10 anos, enquanto Hely se punha na cama, após mastigar uma côdea de pão que pedira à vizinha; Walter dizia à irmãzinha que não chorasse; iria à casa de dona Rosa pedir um pouco de comida; minutos depois voltava apenas com um prato de chuchu frio, mas bem cozido, e o entregava a Taciana, dizendo-lhe: “Come, Taci, e vamos dormir… Às vezes, mamãe volta amanhã…” Nos bairros e nos subúrbios, onde sempre morei ao lado de tantos atormentados e aflitos, senhores, porquanto sou também um deles, o prato de chuchu é uma bênção dos céus: somente nós podemos avaliar o quanto é gostoso esse legume, quando o fogão está sem lume, as latas vazias e a fome afligindo a nossa vida, rondando também as nossas noites como um pesadelo pronto a desabar sobre o nosso sono, interrompendo o repouso dos desventurados.
A noite parecera longa e tenebrosa, tendo em vista o sopro do vento frio e invasor, que por vezes sem conta enregelou aqueles mirrados corpinhos de órfãos, agora, parece, sem ninguém…
A réstia de sol da manhã debruou-se na face de Walter que, faminto, levantou-se, acordou os irmãozinhos e disse-lhes: “Vamos à casa do tio João José e contar-lhe que a mamãe sumiu… Quem sabe, ele fica conosco…” “Fica não, disse Hely, ele tem quatro filhos!” Mas quando a pequenina Taciana disse: “Quero comer!” Os meninos não hesitaram; fechada a porta do casebre, logo batiam à porta do tio João José; contou-lhe o fato. “Maria, cuide dos garotos que vou à polícia saber o que houve com Aquila.” E se retirou com aquela indolência característica dos desalentados, mais preocupado em ter que ficar com as crianças que mesmo em saber o paradeiro da irmã.
Passava já do meio dia quando João José retorna à sua casa e, chamando de lado Maria, sua consorte, relata o seguinte: “Sabe da pior?” Aquila foi ao Juiz e na condição de mãe da vítima, teve força de retirar a queixa contra o “Anta”, reforçada por três advogados e conseguira não sei como, culpar outro homem pelo sucedido a Taci e, segundo me informou a mãe de “Anta”, ambos se foram desta cidade, aconselhado pelos advogados… E agora, o que faremos com as crianças?
A solução que encontraram para o problema que mais o afligia, foi distribuir os pequenos com os parentes, mas, vejam só, senhores! Ninguém da parentela quis Taciana, tendo o casal João José que ficar com a menina “enquanto arranjamos internamento para ela no Lar dos Pequeninos”, sugeria a tia, esposa do João, acrescentando: “Só que não contaremos a eles o sucedido, do contrário, quem sabe, eles também não a quererão…”
Ora, senhores, mas observem isso: a mais necessitada de todas as crianças do mundo, e, mentindo, dificultariam, mais ainda, o acolhimento da criança para o santuário de uma instituição cristã e verdadeiramente caritativa. De fato, é difícil conseguir um internamento nessas entidades filantrópicas particulares, devido ao número, sempre vasto, de pequeninos que as superlotam. Mas, num caso desse não há dúvida: não se pensa duas vezes.
Foram à instituição; relataram o fato simplesmente assim: “O pai morreu e a mãe sumiu”… “A família não pode ficar com a menina?” “Todos são muito pobres…” “Que mais?” “Acho que a menina precisa de tratamento, de escola…” “Ah, então, a pequena é doentinha?” “Sim. Muita lombriga, talvez…” Anotarei seu endereço e amanhã farei uma sindicância no caso. E assim ficou tudo combinado. A sindicância foi feita. Parente por parente foi visitado. Ninguém dizia nada a respeito da imensa tragédia de Tacinha. Pelo fato de ninguém, na família, se interessar pela menina, e tendo a comissão de sindicância do Lar dos Pequeninos notado que todos fitavam a menininha com desamor, sem muito interesse, quase com frieza total, decidiu que a garotinha precisava, mesmo, ir para o Lar da Criança. – Está certo, disse o diretor da entidade a João e Maria. – Levarei a Taciana. Agora, precisamos legalizar toda a documentação: registro de nascimento, atestado de óbito, atestado de abandono por parte da mãe e completo exame médico… – P’ra que o exame médico? Perguntou, preocupada, a tia. – Se a criança for portadora de alguma doença contagiosa, teremos, antes, que hospitalizá-la, se for o caso ou, então, deixá-la na sala de isolamento até que o médico a libere para a companhia das outras crianças… A senhora sabe, não é, uma doença infectocontagiosa poderá contaminar as duzentas outras, já imaginou o trabalhão? Depois, o exame minucioso faz parte dos primeiros atendimentos a uma criança necessitada, pois lá cuidamos, principalmente, da saúde, da felicidade e do bem estar de todos os nossos protegidos. – Bem, nesse caso… e ela olhou para o esposo, como se indagasse em silêncio a respeito do segredo que ocultavam, ao que João José, entendendo a indagação disfarçada da consorte, adiantou: – Eu estava pensando, senhor… – Pois não. – É… Eu queria dizer-lhe algo mais a respeito da criança…
E contou-nos o drama que lhes transmitimos. Precisando de uma confirmação do MM. Juiz de Menores, este nô-la cedeu, em forma de declaração, e ficando, a estas alturas, ciente de que Antônio “Anta” conseguira safar-se da cadeia e tomar rumo ignorado com a mãe de Taci, pediu ao Diretor da Instituição que acabava de recolher, oficialmente, a criancinha necessitada: – Faço questão que o senhor leve o caso a conhecimento do sr. promotor, pois, eu supunha que o “Anta” ainda estivesse preso e, pelo que constatei, até o processo do malandro desapareceu da Delegacia de Polícia. Isso não pode ficar assim. Um monstro como o “Anta” deve sofrer prisão perpétua. Relate o fato ao promotor, sim?
– Não, doutor, explicou o diretor da casa de Menores Órfãos, não me compete punir a ninguém; o que me competia fazer, já o fiz: amparar a pequena que, deste momento em diante, se submeterá a prolongados tratamentos psicológicos e outros mais; quanto aos criminosos – penso eu – já estão punidos pela própria fuga, pois ninguém foge de si mesmo, e uma consciência culpada já é um inferno inclemente demais a castigar a quem a carrega; se o senhor não pensa assim, faça o que achar conveniente, dentro dos limites que o seu cargo permite.
O diretor do Lar dos Pequeninos sentiu a indescritível ventura de verificar que a pequena Taci, dentro agora dos seus cinco anos de idade, ao ser indagada por ele se queria morar em sua companhia num casarão enorme cheio de outras criancinhas, sorriu larga e espontaneamente, sem o mínimo temor dele, o que era de se estranhar, pois desde o acontecido Tacinha sempre temeu os homens, e foi quando o Diretor a abraçou de olhos cheios de pranto, apertando-a ao coração, dizendo-lhe, quase numa prece: – Minha filha, juro por Deus que você, tão pequenina, cândida e indefesa, depois de padecer nas labaredas do inferno, encontrou, finalmente, neste mundo tão desumano e cruel, um cantinho abençoado e seguro, um pedacinho do céu na terra, onde Jesus cultiva flores de bondade e esperança, como você, e onde o seu coraçãozinho poderá sentir que, afinal de contas, nada está perdido: no tumultuado drama dos atormentados há sempre a mão da Caridade estendendo o Amor, e há sempre o coração de Jesus pulsando em outros corações, naquela harmonia tranquila e segura de que, depois do fogo das aflições, todos seremos bons, pois jamais há de ficar perdida uma só ovelha do Grande Pai…
Mesmo que crimes piores cometam os homens, jamais descrerei da vitória final do bem, pois se somos, todos, filhos do Amor Perfeito, perfeito haveremos de ser no imperfeito amor que ora nos conduz, pacientemente, ao Amor Perfeito que é Deus, nosso Pai e Criador…
Confiemos em Jesus, assim como Ele confia em nós todos, apesar de tudo o que fazemos para não merecermos a confiança dEle.

(Iron Junqueira é escritor)

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