Opinião

Teatro experimental do negro em Goiás – III

Redação DM

Publicado em 31 de agosto de 2016 às 02:59 | Atualizado há 9 anos

Pela terceira vez estou noticiando sobre o lançamento do livro em epígrafe, a acontecer no dia 16 de setembro deste ano de 2016, às 19h30min, no Auditório do Fórum de Mineiros, onde ocorrerá uma animada e entusiástica programação, destacada pelo talento dos Violeiros do Cerrado, Grupo Musical local; encenação de “fragmento” da peça Auto de Zumbi, autoria do escriba, pelo Grupo de Teatro Theaomai, batuta, Toninho Gomes; declamação do poema Lamento Negro, por Ivanita Gonzaga Pio, talentosa filha da comunidade do Cedro, cujo trabalho engrandece o conteúdo da obra; dentre outros, falas e apresentações do livro que, certamente, pelo trabalho que deu e imagina o autor, não figurará na galeria dos esquecidos. Que os artesões divinos me salvem.

Certamente, os leitores, não sei quantos, já devem estar curiosos, querendo saber o que diabo quer dizer “Teatro Experimental”, mais propriamente “do negro em Goiás”. Qual é a origem?  O que o segmento étnico negro tem a ver com isso?  Por quê? Antes de tudo, porque, segundo Patrice Pavis, no seu Dicionário de Teatro (1999), tradução J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira, vem da Europa, particularmente da França, Inglaterra, Alemanha e Espanha, onde já está em concorrência com teatro de vanguarda, teatro laboratório, performance, teatro de pesquisa ou, simplesmente, teatro moderno; opondo-se ao teatro tradicional, comercial e burguês que visa a rentabilidade financeira e se baseia em receitas artísticas comprovadas, ou mesmo ao teatro de repertório clássico, que só mostra peças ou autores já consagrados.

Conforme autoria citada, é “mais que um gênero, ou um movimento histórico, é uma atitude dos artistas perante a tradição, a instituição e a exploração comercial”. Tem outros aspectos ou características. Passa pela Era dos Inovadores, onde realmente se renova. Alcança o que se denomina “Marginalidade”, onde se situa à margem do grande teatro, “aquele que atrai o público”, faz as estrelas viverem, atrai subvenções, garante a instituição, enfim, tem suas excentricidades, sempre buscando reconquistas do espaço cênico e muito adequado às experiências, como ocorreu quando o renomado historiador e escritor Abdias do Nascimento o trouxe para o Brasil, na década de 1940, mais precisamente o Rio de Janeiro, onde foi intensa e artisticamente encenado por algumas décadas, deixando grande resultado especialmente na consciência do segmento negro e, de certo modo, nas classes mais elitizadas da sociedade branca, a que, na minha opinião, mais precisa reciclar e modificar o que pensa nesse particular.

Recebi valiosas informações do escritor e historiador Abdias do Nascimento, sobretudo lendo os seus livros. Ainda em uma semana de estudos afro-brasileiros que assisti em Belo Horizonte, Minas Gerais (1978), acompanhado dos escritores Aidenor Aires e Brasigóis Felício, ali me sendo ainda essenciais os diálogos que mantive com os importantes historiadores, sociólogos e antropólogos Clovis Moura, Zélia Gonzales, Nivaldo Costa Lima, Waldemar Barbosa e outros ícones desses estudos, cujo talento, por certo, permanecerá na história do futuro. Achada a tática, quando ainda escrevia Racismo à Brasileira: raízes históricas, precisamente na década de 1970 e na de 1980, pesquisei e escrevi o texto que considerei adequado, a ser montado e posto em cena como arte teatral, chamado Auto de Zumbi, no intuito de combater radicalmente o racismo, logo entregue às pessoas de minha confiança para a execução.

Inicialmente, ao amigo, teatrólogo José Fraga, em Goiânia, onde escrevia sobre teatro no jornal Opção, que o avaliou, montou e encenou inúmeras vezes na Capital e interior de Goiás; a seguir, aos dedicados atores, Toninho Gomes, Cláudio Fumaça e Almir Amorim, em Mineiros que, por sua vez, fizeram o mesmo, sobretudo nesta cidade, onde, assim como Fraga, prestaram um importante serviço à cultura, à arte, à história das ideias e, em particular, ao Teatro de Vanguarda, como acredito poder ser chamado o Experimental do Negro, reunindo educação, arte e cultura e que, por se encontrar artística e politicamente articulado e engajado, fugindo do lado ruim do marginal e periférico, passou, desde seu início no Rio de Janeiro (1944), a exigir acentuado estudo, arguta pesquisa e decisiva persuasão crítica, visando glosar ou exercer censura e poder ajudar a transformar a vida política, econômica, social e cultural da sociedade brasileira, com finalidades e objetivos pedagógicos claros e convincentes.

Ditos objetivos, estão transcritos nos capítulos do livro Teatro Experimental do Negro em Goiás (Tengo), como conteúdo deste livro, que imagino não passar de uma singela contribuição ao processo de evolução historiográfica do Teatro, no Estado de Goiás e com certa surpresa, o de Mato Grosso, onde, como em Goiás, existiram e existem inegáveis valores da arte de Shakespeare, precisando ser resgatados e tirados do anonimato e injusto silêncio dos esquecidos, diligência, aliás, que já vem sendo feita, mormente mais recentemente, com o escritor e pesquisador Carlos Gomes Carvalho, não podendo esquecer, contudo, que não estamos mais no tempo das “comédias de costumes inconsequentes ou dramas convencionais”, que só os privilegiados da sorte podiam assistir.

Acredito ter sido assim que surgiu nas décadas de 1970 e 1980, na emergência dos movimentos negros – pela primeira vez na história político-cultural e artística nas terras goianas – o combativo Teatro Experimental do Negro (TEN) que, além das notícias e informações publicadas na mídia das décadas citadas e vir como “desmascaramento da história oficial e da hipocrisia racial que permeia a nação”, exigindo Constituição comprometida com o povo, só agora ouso registrá-lo em âmbito historiográfico, visando resgatá-lo com seus ideais de denúncia e combate ao racismo; experiência histórica positiva dos afro-descendentes; construção de uma dramaturgia alternativa; na tentativa de educar a classe dominante branca, através de uma pedagogia estruturada no trabalho da arte e cultura, recuperando-a da perversão etnocentrista de se autoconsiderar superiormente europeia cristã, branca, latina e ocidental; dentre outros, pesquisa buscando as referências possíveis das culturas africanas e afro-brasileiras.

Vale dizer, o Teatro que ora vira livro, a ser lançado no dia 16 de setembro em Mineiros, é realmente histórico, imprescindível, principalmente por ser modalidade engajada, inovadora, guerreira e radical, presente no Estado a partir das décadas citadas, ora precisando sair do esquecimento ou “escuro da alma” dos seus fundadores, defensores e animadores, entre os quais a arte teatral não pode ser só memória sem utilidade, estranha e banalizada, a que talvez Proust (1871-1922), em “À Sombra das Raparigas em Flor” (Trad. Mário Quintana/Dicionário de Citações, Paulo Rónai-1985), possa explicá-la:

“…a maior parte de nossa memória está fora de nós, numa virada de chuva, num cheiro de quarto fechado ou no cheiro duma primeira labareda, em toda parte onde encontramos de nós mesmos o que a nossa inteligência desdenhara, por não lhe achar utilidade, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem estancadas, ainda sabe fazer-nos chorar. Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas oculta a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado”.

 

(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGG, Ubego, mestre em História Social pela UFG, professor universitário. ([email protected]))

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