Tempos bicudos
Redação DM
Publicado em 25 de outubro de 2018 às 23:13 | Atualizado há 7 anos
Pode parecer fake news, mas é rigorosa verdade. Tivemos um primeiro turno só com gritaria, traições e impropérios. Uma falta de civilidade incompatível com a sociedade civilizada que o País quer construir e que é explicitada na Constituição de 1988.
Basta dizer que terminou com os dois finalistas propondo uma nova Constituinte! Só recuaram quando viram a imbecilidade que propunham. Entretanto, isso escondeu mal o autoritarismo orgânico tanto do PT como do PSL, que elegeram as duas maiores bancadas da Câmara Federal.
O problema é que os programas registrados pelos dois partidos são narrativas genéricas inconsequentes. Não passam de promessas que não resistirão ao duro teste de mitigar a tragédia fiscal produzida no governo do PT. E tem mais.
A cada pequena crítica tentam corrigi-los, o que revela a pressa, o oportunismo e a paixão ideológica com que foram construídos. O PT com sua estadolatria envelhecida e o PSL com seu mercadismo anacrônico. São o passado.
Os dois tratam o gigantesco desequilíbrio fiscal construído pelo voluntarismo do governo Dilma de 2012 a 2016 com muita ligeireza. O déficit fiscal cresceu de 2,3% do PIB para 9% e a dívida bruta de 54% para nada menos que 70%, enquanto o PIB per capita caía 9%.
Tudo indica que terminaremos, em 2018, com uma relação em torno de 76%, nível muito elevado para nos metermos na aventura de tentar sair da encrenca aumentando ainda mais os gastos públicos.
É preciso reconhecer que as fantasias dos PACs, com projetos muito mal estudados, acabou nos deixando com 7,4 mil obras inacabadas, o que significa que suas taxas de retorno até agora são nulas.
Apenas para dar um exemplo. Tomem os programas dos dois partidos para a solução do maior problema nacional, o da segurança, que está destruindo o País. O PT apenas propõe o que deixou de fazer nos recentes 13 anos no poder. O PSL sugere medidas “mágicas” de resultados duvidosos e desaconselhadas pelos maiores especialistas do setor. Não têm foco. Só palavras.
A morte de Tancredo Neves foi um daqueles acidentes que insistem em mudar o destino do Brasil, desde a separação entre Pedro I e José Bonifácio. Com sua sabedoria e a experiência de uma rica vida política, ele ensinou que nela há um comportamento com um limite sutil que violado pode ser mortal: “Quando a esperteza é muita, ela engole o dono”.
A campanha eleitoral foi uma tempestade de fake news para esconder muita esperteza. Os candidatos não levaram para a arena o que pensam sobre o mundo e o Brasil. Apelaram para seus economistas. Parecem acreditar que eles são portadores de uma “ciência”, quando são, apenas, sacerdotes de diversas seitas de uma mesma religião politeísta.
No segundo turno, a confusão aumentou. Os dois candidatos não têm economizado em “contradizer” o que dizem seus economistas…
Foi fake news alçar a economia à altura de uma “ciência”. Mas isso não reduz o valor do conhecimento empírico acumulado nessa disciplina para a administração das sociedades civilizadas. Todas desenvolveram-se combinando liberdade individual, mitigação da desigualdade e coordenação da atividade econômica pelos mercados.
A contraprova são as nações onde se exerceram o voluntarismo e o desenvolvimentismo (do qual o Brasil é um notável exemplo em 2012-2016), que pretendeu ter descoberto “outro caminho”. Elas testemunham o seu fracasso universal.
A enorme desigualdade social, que é causa da malaise que hoje ataca as democracias, é resultado da falsa “ciência” econômica. Foi ela que inventou o “mercado perfeito possuído pelo imperativo categórico kantiano” que seduziu os políticos.
Promoveu a globalização (um bem indiscutível no longo prazo) sem estimular as políticas públicas para evitar as tragédias que ela produz no curto prazo (também indiscutíveis). Pior, inverteu, a partir dos anos 80 do século passado, todo o processo.
Submeteu a economia real à dominância das finanças, como é visível no Brasil. Gerou, assim, uma apropriação de riqueza que ofende o senso de justiça dos cidadãos.
A nossa situação interna é grave e a situação externa acumula nuvens negras, mas nenhum dos candidatos diz como enfrentá-las. No início do segundo turno ficou claro que o primeiro abrigou traições que terminaram muito mal. Alckmin foi abandonado por seu partido. Ciro foi traído por uma armadilha.
E agora, mais uma surpresa: o PT, que sempre parasitou Lula (o único membro comprovadamente democrata do partido), propõe esquecê-lo. Abandonou o vermelho, subtraiu a estrela, adotou o verde-amarelo e, mesmo assim, quer continuar a parasitá-lo. Tempos bicudos os que estamos vivendo…
(Delfim Netto, formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal)