Tortura e flagelo social brasileiro
Diário da Manhã
Publicado em 5 de abril de 2017 às 03:02 | Atualizado há 8 anos
Há algum tempo, quando fui policial civil, eu estudava Filosofia em uma universidade pública e um dos meus melhores amigos de curso era um ferrenho defensor dos direitos humanos. Onde quer que houvesse alguma manifestação popular, principalmente se fosse contra a polícia, lá estava ele, aguerrido, enfurecido, dizendo-se um revoltado contra toda forma de violência.
Certa vez, ele procurou-me e relatou que teve a sua casa furtada, tendo os meliantes levado alguns pertences seus. Eu disse a ele que iria tentar descobrir a autoria e, se possível, recuperar os seus objetos. No dia seguinte, contatei-o, informando que havia elucidado o crime. Os autores estavam presos e os objetos apreendidos estavam à sua disposição na delegacia e que ele deveria ir até lá para assinar o termo de restituição e prestar declarações. Depois de feito isso, ele perguntou-me o que seria feito com os detidos, suspeitos do crime. Respondi-lhe que estavam presos e que estariam à disposição da justiça, mas que possivelmente seriam julgados e condenados. Para minha surpresa ele perguntou-me: “só isso”? Redargui: como assim? Ele, demonstrando indignação protestou: quer dizer que eles vão ficar no “bem bom”? Arrombam a minha casa e depois só ficam presos? Poxa, você é meu amigo, bem que poderia dar-lhes ao menos umas porradas.
O que aquele “militante dos direitos humanos” sentiu não é um fato isolado. Desde que iniciei no magistério ouço alunos perguntando se, “para determinados crimes, só prisão não é pouco? O senhor não acha que o criminoso teria que sofrer mais”? Considero que o sentimento de ódio ao outro seja um processo atávico que se protrai no tempo, de geração em geração, constituindo-se na formação orgânica, onde a natureza transforma uma sociedade inteira em sádicos. A violência, portanto, habita nos genes de um povo que se identifica com essa característica social elementar. No Brasil, a permanência entre nós desse grande flagelo da humanidade, chamado prática da tortura, só ainda existe porque ela não é uma prática condenável, uma consequência dos desvios funcionais ou considerados atos de desvarios dos maus agentes do poder repressivo estatal. A tortura, ao contrário de ser considerada um ato abominável que atenta contra nossos anseios civilizatórios, é uma exigência de nossa sociedade. Esta sociedade se projeta no agente do poder estatal, elegendo-o como a pessoa responsável e incumbida de executar o trabalho sujo. A violência, o desejo de torturar, de infligir sofrimento contra aquele que é considerado o estigma social, é latente no instinto de cada pessoa, as que adotam o discurso do “bandido bom é bandido morto”. Não importa nem se existem ou não provas suficientes de autoria delitiva. A multidão ensandecida está sempre pronta a realizar seu próprio julgamento e, claro, promover o linchamento moral e físico daquele que os agentes de polícia escolheram para ser destroçado pela grande máquina de moer a reputação alheia: a “opinião pública”. Uma sociedade violenta exigirá sempre, dos representantes do poder repressivo penal, os mais requintados métodos de açoites contra os escolhidos, a clientela do sistema penal, a fim de proporcionar ao máximo a satisfação da bílis social, aos sedentos por espetáculo sangrento, sádico.
Para o pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), governantes sem legitimidade e sem escrúpulos, preocupados apenas com a preservação de seus privilégios, sem nenhuma possibilidade de serem amados, usaram o terror para manter o povo intimidado e submisso. E o próprio povo, por sua ignorância – companheira inseparável dos preconceitos -, muitas vezes colaborou para que seus dominadores usassem da violência.
Discorrendo sobre a evolução história da prática da tortura, o advogado Valdir Sznick diz que “a tortura, em sua evolução histórica, foi empregada, de início, como meio de provas, já que, através da confissão e declarações, se chegava à descoberta da verdade; ainda que fosse um meio cruel, na Idade Média e na Inquisição, seu papel é de prova no processo, possibilitando com a confissão a descoberta da verdade. Posteriormente, foi a tortura utilizada como pena (entre os Antigos e romanos), bem como prova propriamente dita. Por fim, foi utilizada como satisfação, não só do crime cometido, mas, também, como meio de satisfazer os instintos baixos, em atos de verdadeiro sadismo. Isso porque a tortura tem em si uma conotação muito ligada ao sadismo; o sadismo supera o poder – que leva à tortura – e, ainda, a vingança. No fundo, o torturador é um sádico”.
A prática da tortura no Brasil apresenta duas características que a tornam peculiar em relação à história da tortura em diversos povos e em diferentes circunstâncias. Enquanto a tortura, preponderantemente, foi ou é empregada como vis máxima contra um inimigo estrangeiro que atenta contra os interesses de uma nação, um povo, uma doutrina ou uma ideologia, no Brasil a sociedade a aplaude desde que exercida contra as classes sociais periféricas, e a execução do martírio é feita por agentes (policiais, penitenciários) oriundos dos mesmos bolsões de miseráveis. Curiosamente, a vis direta é exercida por aquele que também é um pária social. Desta forma, o algoz não sabe o porquê odeia e agride a sua vítima, mas, tem em mente a disciplina, a consciência do dever de obedecer ao sistema, à classe social dominante, que seleciona quem é a clientela que dá azeitamento ao aparelho repressor penal.
A tortura é algo que nega qualquer sentimento humanitário, tanto para a vítima, quanto para o algoz. É, também, a absoluta negação do Estado de Direito; é a forma crua de revelar uma sociedade em estado de natureza, jamais como uma civilização. A tortura abate, aniquila, qualquer anseio civilizatório. É evidente que o torturador é um frustrado, é um impotente, que busca no emprego da subjugação de outrem, na redução de uma pessoa à humilhação, uma espécie de “válvula de escape” aos seus sentimentos de fracassado. Diversas podem ser as razões que impulsionam o indivíduo à prática da tortura. No Brasil, durante a ditadura militar, quase todos os métodos de tortura utilizados envolviam submeter a vítima nua, abuso sexual, vilipêndio aos órgãos genitais, etc. Também durante a invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América, na prisão americana de Abu Ghraib, os prisioneiros de guerra eram submetidos às mais variadas formas de sevícias sexuais. Isso revela, claramente, que o torturador, ao torturar, não está imbuído de um “interesse público”, um “relevante valor” ou “indignado” com o suposto criminoso, considerando a natureza do crime praticado. O algoz busca, em verdade, um pretexto para satisfazer suas variadas frustrações, angústias, medos, sentimento de impotência, conflitos existenciais, sexuais, etc.
A vítima, por sua vez, pode carregar consigo, por toda a vida, as marcas, visíveis e invisíveis, produzidas pela tortura. Em parecer de psicólogos sobre a tortura, apresentado ao Relatório Sobre Tortura no Brasil, elaborado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, diz o seguinte: “A tortura gera traumatismos agudos e sequelas físicas e psicológicas que perduram no tempo, às vezes visíveis, e outras de maneira invisível. Suas consequências podem se manifestar imediatamente ou após anos de ocorridos os fatos traumáticos (efeitos transgeracionais). Receber pessoas que passaram por situações de tortura, no âmbito terapêutico é uma forma de reconhecer e cuidar de “alguns efeitos” destes terríveis danos. Não pode ser a única, nem a mais importante, uma vez que a violação dos direitos humanos essenciais não se configura apenas como um crime contra aquelas pessoas, mas como um crime contra a humanidade. Não pode, nem deve, portanto, ser tratado somente como um fato individual, pois se trata, certamente, de um acontecimento político”.
Em recente relatório apresentado pelo Relator Especial das Nações Unidas Sobre a Tortura no Brasil, ressalta que “a impunidade para os casos de tortura por agentes públicos no Brasil continua sendo a regra, e não a exceção. A tortura e os maus-tratos por parte da polícia e dos agentes penitenciários segue sendo um fato alarmante e de ocorrência regular, principalmente contra pessoas que pertencem a minorias raciais, sexuais, de gênero e outros grupos minoritários”.
Talvez o que mais agrava essa nódoa sobre o Brasil, é o fato de que instituições como o Judiciário e o Ministérios Público, salvo raras exceções de atuações pessoais, endossam a violência policial e a que ocorre nos porões das prisões. Investigar e punir os casos denunciados de tortura só os que são de grande repercussão.
Há, ainda, um árduo e longo caminho a ser percorrido pela sociedade brasileira até alcançar e poder assimilar o mínimo de valores humanos. E esse objetivo a ser alcançado dependerá do esforço pessoal, de cada homem e cada mulher, imbuídos da determinação de construir-se uma sociedade melhor. As instituições de Estado, ao que parece, marcham em sentido inverso aos nossos desideratos civilizatórios.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista, presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura – CEPCT-GO. E-mail: [email protected])