Opinião

Travesti chutado por crentes é mais cristão do que eles

Diário da Manhã

Publicado em 14 de julho de 2016 às 02:29 | Atualizado há 9 anos

Prezado amigo aux. adm. Michel Lopes Paulinelli, BH, MG

Tenho vários amigos e várias amigas que são ateus e ateias. Uma vez um deles me disse honestamente que a Bíblia é pura empulhação, com  historinhas e lendas sem pé nem cabeça. Outro com quem eu quis rezar em face de uma doença terminal, que o matou, pediu que não fizesse porque ele achava que oração é pura conversa mole jogada ao ar, ao mesmo tempo em que agradeceu com lágrimas nos olhos por minha amizade, pelos meus abraços e pelo apoio que compartilhei com ele na sua fase mais dolorosa da vida.

Durante a ditadura conheci nas prisões vários ateus tremendamente sensíveis às conversas sobre justiça social, mas que não toleravam  igreja, ouvir falar em crentes e em capacidade de os cristãos amarem de verdade.

Um ateu, numa vez em que fui perseguido numa espécie de filme de ação em Santa Maria, RS, quando tive que fazer manobras espetaculares à direção de meu carro para evitar que minhas criancinhas fossem mortas ou sequestradas por um perseguidor da ditadura, não titubeou em meter as mãos nos bolsos e retirar dinheiro para me dar, pedindo-me que eu corresse para um município vizinho para me esconder.

Um amado amigo, que é ateu, volta e meia é “sacaneado” por medíocres, mas nunca o vi nem o escutei falando mal de ninguém nem destruindo reputações de inimigos. Pelo contrário, surpreende-me avaliando que certas pessoas não são más, mas incentivadas pelas circunstâncias a fazer o mal.

Biógrafos do escritor Graciliano Ramos afirmam que ele era ateu. No entanto, como autor de Vidas Secas, sua mais famosa obra, demostra a tragédia da exploração que esgotou o sertão nordestino e desgraçou a vida de seu povo retirante.  Elegeu-se prefeito de Palmeiras dos Índios, Alagoas, desenvolvendo uma administração humanista, contando com os presos comuns como trabalhadores na construção de estradas. Pensava que a ociosidade nas celas eram ruins e causas de destruição das pessoas dos condenados. Consta que Graciano era grande leitor da Bíblia, movido pelo interesse na natureza humana e não pela fé.

Ao contrario dos meus amigos ateus e de Graciliano ditos crentes, ratos de igrejas, agrediram barbaramente a transexual  Viviany Beleboni,  aquela que desfilou como ‘crucificada’ na Parada Gay, como mostra a foto que ilustra esta carta que a ti escrevo, meu amigo.

A jovem conta num vídeo privado, segundo informações da mídia e da página “somos todos Viviany” no Facebook, que cinco “homens” a espancaram nesta segunda-feira, 11 de julho de 2016, no centro de São Paulo. Seu rosto dilacerado testemunha que algo muito grave e desumano lhe aconteceu.

Viviany contou que foi a um supermercado e percebeu que foi seguida pelos cinco, que a atacaram repentinamente, sem lhe darem direito à defesa.

Impressiona o que lhe disseram enquanto a chutavam, quebrando alguns de seus dentes e deformando o seu rosto. Segundo declarou a assessoria de Viviany ao site Uol, os “crentes” recitavam textos bíblicos dizendo: “A todo momento falavam que eu era um demônio, que essa raça tinha que morrer. Recitavam passagens da Bíblia ou que diziam alguma coisa relacionada à Bíblia. Falavam em Romanos e coisas como ‘não te deitarás com um homem, como se fosse mulher’ e muitas palavras que não entendia, como se fosse em outro idioma. Eles diziam também ‘traveco vira homem’, ‘praga da humanidade’. Ofensas e Chutes. Quero esquecer”, afirmou a modelo.

Há repetições seguidas e escandalosas de violências e desrespeitos por pessoas que absolutizam dogmas, fundamentalistas, presas às suas questionáveis verdades na interpretação arbitrária, literalista e sem o contexto inteiro da Bíblia e das culturas primitivas, panos de fundo de certos conceitos não estudados adequadamente.

Tais “cristãos” são incomparavelmente desumanos, não se aproximando jamais do cristianismo infinitamente mais ativo na Viviany do que nos discursos e comportamentos deles.

Se o deus em quem creem os faz desumanos e desqualificados no respeito ao outro e suas diferenças eu também sou ateu, Não creio nesse deus facínora e bandido.

Não creio nas igrejas, cultos e missas dessa gente que chuta, que quebra os dentes e que tão insanamente deforma o rosto do próximo.

Não creio no cristo desses crentes que somente veem demônios nos outros e santidade em suas discriminações abomináveis.

Gente que prefere gritos de pastores lhes surrupiando dízimos e os ensinando a odiar, enchendo-lhes as almas de preconceitos fundamentalistas, é mais próxima dos soldados que crucificaram o subversivo da Galiléia do que de Jesus.

Gente crente que aceita ser ovelhas mudas e cabresteadas por pastores,  que as usam como eleitores de direitistas, conservadores e golpistas, serve apenas como canal antissocial e destruição do bem.

Vejo muito mais cristianismos numa roda de amigos bebendo cerveja trocando ideias emocionadas sobre alunos, sobre pessoas e lutadores que crescem e se libertam do senso comum do que nas santas ceias e cultos desses fundamentalistas que emporcalham a compaixão.

Numa situação dessas cabe o juízo contundente das palavras sábias do Primeiro Ministro da Índia, Mahatma Gandi, ao receber missionários ingleses no palácio governamental: “Amo o Cristo de vocês, mas odeio o cristianismo de vocês.”

Gandi recebeu de presente uma vez de missionários ingleses, quando jovem, uma porção do Evangelho com o Sermão da Montanha. Encantou-se de tal modo com as palavras de Cristo sobre a paz, sobre a justiça, sobre a fome, enfim sobre a mais profunda e sublime dignidade humana, que quis estudar na Inglaterra para conhecer os seguidores de Jesus. Que decepção! Foi expulso do transporte coletivo, das universidades e ruas por ser negro e hindu. E o foi pelos cristãos, de quem Gandi esperava imitação do Jesus do Sermão da Montanha.

Os crentes chutadores e justiceiros violentos de Viviany, não diferentes de muitos que frequentam igrejas por aí, talvez consigam ser piores do que os que decepcionaram o futuro pacifista promotor da independência da Índia da Inglaterra “cristã”, mas cruel comerciante de escravos e imperialista destruidora do espírito autônomo hindu, desumana, colonizadora e opressora, que roubou tudo o que pode do povo dele.

Uma das providências que os novos tempos e da nova sociedade democrática, com que sonhamos, num Estado livre de teocracias fundamentalistas, homofóbicas, machistas e racistas, deverão ser as de investigar profundamente os donos dessas igrejas laboratórios de fanáticos semelhantes ao Estado Islâmico, donos da verdade e fascistas e o que fazem com sua juventude e com sua gente, inclusive com as mulheres.

Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz sociais.

 

(Dom Orvandil, OSF: bispo cabano, farrapo e republicano, presidente da Ibrapaz, bispo da Diocese Brasil Central e professor universitário, trabalhando duro sem explorar ninguém)


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