Opinião

Três anos

Redação DM

Publicado em 23 de maio de 2017 às 02:19 | Atualizado há 8 anos

Foram três anos, três longos anos. Três anos que nos atravessaram como três séculos, que nos envelheceram como envelhecem três séculos, que nos abateram o ânimo, que nos diminuíram a frequência do sorriso, que nos amargaram o sangue, que nos amargaram os olhos. Aproximadamente 1095 dias, contados religiosamente em todas as pródigas vinte e quatro horas de cada um deles, entre diurnas e noturnas, matutinas e vespertinas.

E marcadas todas as vezes, sem exceção, quando novamente observadas as sistemáticas injustiças e desmazelos deste estado, em que víamos, da janela de casa ou da porta da sala de aula ou do trabalho, camaradas em marcha a tentar conceber e realizar um mundo melhor, um mundo mais justo. Enquanto nós, como que cachorros na coleira, no ímpeto quase atávico, involuntário, de seguir conjuntamente, sentíamos o pescoço apertar, já que a extensão dos nossos movimentos, durante estes três intermináveis anos, limitou-se à corda das cautelares que nos atavam ao poste da inércia. Repito, marcamos cada uma delas.

E cada uma das vezes que, pensando escrever ou dizer algo de teor mais público, nos víamos no medo de que a interpretação arbitrária destas mesmas cautelares nos colocasse novamente as barras da cela à cara. Três anos com medo, medo de falar, medo de erguer os braços, medo de se expressar.

Três anos em que o receio do arbítrio da lei fez de nós pan-óptico de nós mesmos, a contidamente tolher qualquer ímpeto mais espontâneo de vontade, cada centelha de vislumbre politicamente orientado. E, como qualquer animal privado daquilo que lhe é inerente, vimo-nos, e os envolta também, acentuados em raiva, insatisfação, infelicidade, stress, amargor.

Por três anos amputados de nossos direitos, de direitos elementares. Três anos que nos foram roubados, em um momento crucial e incontornável da nossa juventude. Três anos como cidadãos de segunda categoria. Três anos tendo de conviver com a impotência decorrente da impossibilidade do exercício pleno da vontade de transformação social, de um lado, e o estigma do olhar social por sobre nós, do outro.

Três anos nos quais vimos, de longe, novas pessoas ingressarem na atividade militante, novas perspectivas serem apresentadas, novos referenciais reivindicados, novos imaginários elucubrados. E nós, já como inválidos, a ver e ouvir tudo como se ecos distantes de um televisor velho mal sintonizado. Como se já tivesse sido há tanto tempo que fizemos, nós mesmos, parte daquela mesma orquestra. Três anos em que o tempo ficou suspenso e as marcas que havíamos deixado no chão se foram apagando.

Três anos que, com uma alegria com a qual há muito tempo não enunciava algo, acabaram.

Não somos mais os mesmos, não recuperaremos o tempo que nos foi tomado. Uma coisa, todavia, posso dizer acerca do que não mudou: não nos acovardamos. Não deixaremos o peso da mão autoritária achatar nossa visão de mundo nem ditar os limites do que pensar como possível ou viável em termos de transformação da realidade posta. Não permitiremos que nossa história se torne destino corriqueiro e habitual a qualquer outro ou outra camarada que esteja conosco nas trincheiras. Não serviremos de exemplo para mostrar que o vilipêndio do estado disciplina os corpos e os comportamentos como bem quer. Não. Estamos aqui, uma vez mais.

Luto por uma sociedade transformada, não me arrependo disso. Se o estado vê nisso culpa, saiba que tem em mim um inimigo, e que continuo de pé. Foram três anos sofridos, mas perceber o que acontece todos os dias e nada fazer é pior, é estar morto. Não se trata de rancor, trata-se de não esquecer aquilo que nos fizeram, trata-se de não esquecer nem aceitar aquilo que fazem todos os dias.

Seguiremos 

Ps: este texto é dedicado a todas as pessoas que nos acompanharam nesse conturbado percurso. Não posso deixar de agradecer a solidariedade de amigos e familiares. A de Leidina Lopes, minha mãe, e Dejalma Caetano, meu pai, porque nunca duvidaram de mim, nem me julgaram nos termos em que queria o estado. Lília Azevedo, que naquele momento esteve ao meu lado a segurar minha mão e sem quem, dificilmente, eu teria tido forças emocionais para atravessar por tudo que houve. Francisco Mata Machado Tavares, Bruno Pena e Nathália Oliveira, seres humanos dos mais admiráveis de que se pode ter nota, atuaram com dedicação e companheirismo que pouquíssimos advogados teriam. E, por fim, a todos os demais amigos e camaradas que seguem na laboriosa empreita que é pensar e tentar a mudança efetiva das coisas.

 

(Ian Caetano, graduado em Ciências Sociais pela UFG e mestrando do Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro)


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