Opinião

Um dia de fúria com a cultura

Diário da Manhã

Publicado em 23 de março de 2017 às 02:28 | Atualizado há 8 anos

Um homem de meia-idade estressado, que está desempregado e em processo de divórcio. Frustrado com o trânsito, o homem fica enfurecido quando seu carro quebra em um engarrafamento gigante em uma das rodovias da área de Los Angeles. Tendo seu dia de cão começando aí, o homem “toca o terror” pelas ruas da cidade. Esse é o roteiro do filme “Um dia de fúria”, clássico de 1993. Quem assistiu ao filme sabe onde o stress elevado pode acarretar na vida de uma pessoa.  Guardadas as devidas proporções, tive meu dia de fúria meses atrás.

No meu caso não foi o carro quebrado no meio de um congestionamento, mas sim, a tentativa de comprar ingressos para um show no teatro. Assim como no filme, deu tudo errado nesse dia, e o simples ato de comprar um ingresso se transformou num jogo de paciência e consternação pela situação apresentada. Dizem que o brasileiro (na sua maioria) não tem o hábito de ir ao teatro. Com esse exemplo que me ocorreu, fica fácil explicar o por que. As produtoras e as organizações culturais parecem fazer de tudo para dificultar o acesso das pessoas ás suas peças.

O show em questão, que irei chamar de Banda X, ocorreu no Teatro Rio Vermelho do Centro de Cultura e Convenções de Goiânia. Era um show cover de uma banda muito famosa já extinta. Precisava de três ingressos. Um para minha mãe e duas amigas. Na divulgação do show anunciaram três pontos de vendas (no próprio teatro, numa agência de viagem e em uma rede de lanchonetes) além de um site especializado em vender ingressos. Comecei a procura pelo site.

O preço do ingresso era de R$ 60,00. Minha mãe e amigas têm mais de 60 anos, ou seja, elas pagam meia. No site simplesmente não tinha a opção de vender meia-entrada. Só comercializava o ingresso normal, inteira. Já achei um absurdo não ter essa opção, mas tudo bem. Um dos pontos de vendas era perto de casa. Resolvi ir lá. O local em questão é uma agência de viagem muito conhecida na cidade. Cheguei lá as 09h00min da manhã e estava fechada. Tudo bem que era num sábado, mas as 09h00min fechada? Esperei dentro do carro até alguém aparecer. Na porta de entrada tinha um cartaz dizendo “compre aqui seu ingresso para o show da Banda X”. Por volta das 09h15min chegou uma funcionária. Antes de abrir a loja já fui perguntando se tinha os ingressos. A resposta foi negativa. A loja já tinha vendido tudo e não iria repor. E até pela má vontade e “cara feia” da funcionária, acredito que mesmo que tivesse ingresso disponível ela não me venderia de tanta preguiça.

Enfim, o primeiro ponto de venda foi um fiasco. Fui então ao segundo, que é numa rede de lanchonetes com várias unidades pela cidade. Chegando lá tinha o mesmo cartaz que tinha na agência de viagem. Entrei, fui ao balcão e perguntei se tinham os ingressos. O atendente me disse que sim, e perguntou quantos queria:

– Três meias-entradas, por favor, disse eu.

–  Não vendemos meia-entrada. Aqui só temos inteira, me respondeu.

– Como assim?

– Não temos meia-entrada. Só inteira.

E o dia de fúria do cidadão que vos escreve estava começando a se desenhar. Primeiro, no cartaz na porta de entrada diz que “vendem-se ingressos”, ou seja, qualquer ingresso. Em lugar algum constava que “vendemos somente inteira”. Segundo, é um absurdo a falta de informação que esses pontos de vendas nos submetem. Se eles querem vender e lucrar com a venda de ingressos, então que vendam e divulguem direito. Se eu soubesse que lá não vendia meia-entrada não teria perdido meu tempo indo lá. Ou então eles usam de psicologia reversa ou de esperteza mesmo, esperando que o cliente compre o que tem á mão, ou seja, se só tem inteira, vai inteira mesmo. Pode até funcionar com alguns, mas acredito que não para a maioria, e com certeza, não para mim.

Deixei a lanchonete frustrado e pensando no quão difícil estava para comprar esses ingressos. Só me restava agora ir à própria bilheteria do teatro. Mas para não perder viagem, resolvi ligar antes. Peguei meu celular, procurei pelo telefone na internet e liguei. E cadê que alguém atende? Toca até desligar. Não tinha jeito, teria que ir até lá. E fui. E a falta de paciência foi comigo. Pra começar, todos sabem o inferno que é estacionar aos arredores do Centro de Convenções. Depois de muitas voltas no quarteirão, de procurar por uma vaga e de aturar os chatos “vigias de carro”, cheguei á bilheteria do teatro e a encontrei como? Vazia. Contei até 10 e bati no vidro. Se não aparecesse ninguém a porcentagem daquele vidro sair dali rachado era alta. Mas graças a Deus (ou não) apareceu uma atendente:

– pois não senhor? Perguntou ela.

– três meias-entradas pro show de hoje a noite, respondi.

– certo. São R$ 90,00, disse ela.

– beleza. Passa no débito.

– não aceitamos cartão senhor, só dinheiro.

– como assim? Não entendi.

– aqui não aceitamos cartão, só dinheiro.

E fez-se então o meu dia de fúria. O restante do diálogo com a atendente é inapropriado e cheios de pi pi pi, então é melhor nem reproduzi-lo aqui. Mas o fato da bilheteria não aceitar cartão foi a gota d’água de uma manhã cheia de decepções. Me expliquem, como pode em pleno século 21, em plena era moderna, onde tudo é online, tudo é automatizado, tudo se paga com cartão, e a bilheteria do teatro não? Como pode? Como pode só aceitar dinheiro? A atendente disse que isso é regra da produtora do show, que o teatro apenas cumpre ordens. Será isso uma prática comum no país todo ou só por aqui? Como podem existir produtoras assim? Não tem cabimento, não tem lógica. Ainda mais nos dias de hoje que andar com dinheiro vivo é pedir pra ser assaltado, e o teatro te obriga a isso. Até vendedores ambulantes de semáforos usam maquininhas de cartão. É uma vergonha, uma falta de respeito com o cliente e pra não dizer, uma burrice imensa. E mais uma vez, a não divulgação disso. Se eles são tão arcaicos assim a ponto de não aceitarem cartão, tudo bem, mas avisem, deixem isso muito bem exposto, explicado. Ninguém tem bola de cristal pra adivinhar. A impressão que dá é que eles dificultam tanto o acesso para as pessoas desistirem de ir.

E não pensem que acabou por aí. Cheguei em casa p da vida e sem os ingressos. Expliquei á minha mãe toda a epopeia para consegui-los sem sucesso. Ela entendeu mas não conseguiu esconder a frustração. Pensei: vou apelar pra última tentativa. Disse á ela que podíamos tentar comprar na hora do show. A atendente havia me dito que ainda restavam alguns lugares, e que se chegasse mais cedo conseguiria.

E assim fizemos. Reuni minha mãe e as duas amigas e as levei até o Centro de Convenções. Entramos na fila e aguardamos. Dessa vez o dinheiro, R$ 90,00, estava na mão. Chegou minha vez. Pedi os três ingressos meia-entrada e já fui colocando o dinheiro pela abertura do vidro. O atendente me disse: – sr. são R$ 180,00.

– Não meu jovem, respondi. São 3 meias-entradas. R$ 30,00 x 3 = R$ 90,00 certo?

– Errado, ele me disse. Esse valor só vale para compras antecipadas. Aqui agora é o valor normal mesmo da inteira.

– Ah, mas vão tomar no c…, seus filhos da p… da m…. do cacet…… dos infernos.

Desculpem, mas não teve como segurar. Essa foi o bolo da cereja para o meu dia de fúria ficar completo. Me lembro do sangue ter fervido e os xingamentos saírem como metralhadora para cima do atendente. O gerente foi chamado e expliquei toda a longa história, desde as 09h00min da manhã até o presente momento na tentativa de comprar esses benditos ingressos. E falei bem falado, joguei toda minha fúria, frustração, irritação, chateação e tudo quanto é “ão” possível pra cima dele. Tanto que ele não teve argumentos a não ser arrumar os três ingressos pelo valor real da meia-entrada. Algumas pessoas na fila relataram quase a mesma história que a minha, a dificuldade insana de comprar ingressos, e pra essas pessoas o gerente também fez o preço normal da meia-entrada. Minha mãe pode enfim entrar e assistir ao show que queria.

Mas a que preço? Será que vale a pena passar por tudo isso só pra comprar ingresso? Toda essa dor de cabeça e informações mal encontradas? Parece cena de novela mexicana ou um dramalhão de quinta categoria. Sei que esse meu dia foi uma exceção á regra, mas fica a dica para quem organiza esses espetáculos: Primeiro: a má divulgação. Se existem alguma “regrinha”, que divulguem. Segundo: os pontos de vendas se tornam totalmente inúteis em determinados casos. Capacitem ou escolham melhor a quem vai terceirizar o serviço. Terceiro: a não aceitação de cartão em plena era digital. Pelo amor de Deus né, nem é preciso dizer mais nada. E Quarta: cobrar preços diferentes de antecipados para compra na hora. Sem prévia orientação, não façam isso.  Essas dificuldades só afastam cada vez mais o público geral dos eventos culturais. O povo quer sim mais cultura e arte em suas vidas. Mas as próprias produtoras com suas regras sem sentido é que os afastam.

 

(Rodrigo Paes Lima, administrador. Contatos: [email protected]. Facebook: coluna do urubu / spotmixweb. Blog: https://spotmixweb.blogspot.com.br)

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