Opinião

Um médico no Duro, que chegou com o irmão inventando moda

Diário da Manhã

Publicado em 29 de novembro de 2016 às 01:04 | Atualizado há 8 anos

Vesperando 1960, chegou lá no Duro o primeiro médico, Dr. Manoel Dias Pinheiro: novo, bonachão, gostador de bater papo com o povo, fala mansa pelo nariz, pessoa que levava a vidinha tranquila do interior, desfrutando as amenidades de uma cidadezinha calma que só tivera médico andejo e que pela primeira vez ganhara um definitivo, que para lá se mudara de mala e cuia.

Dono de uma competência incomum, doutor Manoel andara operando gente quase a canivete e costurando com linha zero comprada lá na Loja Póvoa. Lembro-me bem de sua primeira operação: uma hérnia antiga de Hermínio de Germana, um carreiro e trabalhador braçal da rua, rompera-se e, na falta de recurso para locomovê-lo até Porto Nacional, ou mesmo Goiânia (pois Brasília ainda estava por inaugurar), doutor Manoel operou Hermínio no Hospital São Vicente de Paulo, à luz de bibianos que voluntários mantinham ao redor de uma banca improvisada de “mesa de operação”, procurando segurar o mal-estar do sangue que marejava daquela carne esbranquiçada.

Meu tio Dito era um desses voluntários, e passou vários dias impressionado com aquilo. Não demorou muito, Hermínio caminhava. Bem verdade que andava à feição de um leitão recém-capado, mas o passar dos dias fê-lo passar a caminhar espigado, como antes da pioneira cirurgia.

Quando o povo, admirado, comentava a eficiência do jovem médico, que transformara em rotina o corte de bisturi e a precisão do diagnóstico sem qualquer exame complementar, doutor Manoel até fazia charola:

– Vocês precisam ver é o meu irmão, Alceu. Ele é quem vai mostrar a vocês o que é operar e dar remédio!

Diante dos milagres que o doutor Manoel operava, o povo não concebia que alguém se igualasse àquele homem cujas mãos santas que pareciam curar só no apalpar e cujas receitas, aviadas ali na farmácia de Herculaninho Araújo, jamais deixavam de surtir efeito.

E pouco tempo depois chegou doutor Alceu, irmão do doutor Manoel, já precedido de enorme fama. Sua chegada foi recebida pela hospitaleira gente dali, cuja euforia era entremeada de desconfiança:

– Home quá! Doutor Manoel diz isto é por conta de ser irmão dele! Tá visto que a gente vai crer que tem doutor mais preparado.

Confirmando a propaganda, doutor Alceu não fez por menos: a exemplo do irmão, mostrou uma espécie de medicina que revolucionou a região, causando espanto ao pacato povinho cheio de “inhô sim”.

– Esse doutor parec’inté que é doido: apois num é que mandou banhar meu menino com febre! – um se abismava.

– Isso né nada! – outro secundava – Cê magina qu’ele mandou minha mulher, parida de novo, chupá laranja e melencia?!

Foi um rebuliço dos diabos a introdução daquelas novidades num lugar onde mulher, após o parto, passava até duas semanas numa dieta de pirão de galinha cevada durante meses alimentando-se de milho num ceveiro. Logo, o doutor Alceu botou a mulherada pra tomar banho logo no dia seguinte, uma coisa que elas só faziam após cumprido longo resguardo, e assim mesmo só com água bem esperta. E pôs em prática uma série de inovações estranhas, e para o povo absurdas, que provocavam comentários:

– Esse dotô Alceu tá é inventando moda!

O certo é que o doutor Alceu seguiu o caminho que o irmão abrira, educando o povo e implantando uma nova mentalidade na região, puxando gente de longe para dar volta nos males. Nunca mais morreu menino de mal-de-sete-dias, porque Dr. Alceu aboliu o curativo do umbigo com azeite de mamona e sarro de cachimbo, substituindo por remédio de farmácia.

Doutor Manoel foi-se embora, deixando sua fama, sua história e seu irmão, que o sucedeu no atendimento ao povo, que aprendeu a confiar naquela família, nascida para se dedicar à ciência de Esculápio: de uma geração, uma irmandade mais ou menos numerosa, só o Wagner ficou ligado às origens de fazendeiro; o resto, de homem e mulher, é tudo médico.

Doutor Alceu se apegou tanto à terrinha, que acabou casando-se com Camélia, filha de tio Joca e tia Culininha..

Hoje, mora em Goiânia. Mas sempre que vai lá, mais na qualidade de turista e menos na de médico, recebe a visita daqueles que outrora ficavam perplexos com sua medicina tirada a maluca, botando gente febrenta pra banhar em água fria e mulher parida pra comer coisa tida e havida por reimosa.

E sua medicina, que causou espanto e até medo aquele tempo, ainda hoje deve arrastar gente para, a pretexto de uma visitinha cordial quando ele ia ao Duro, conseguir uma consultazinha de graça, que o povo não é nem besta.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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