Um país que queima museus – parte II
Diário da Manhã
Publicado em 15 de setembro de 2018 às 22:27 | Atualizado há 7 anos
Não havia dinheiro para o Museu Nacional. O Brasil não tinha nem 500 mil por ano para mantê-lo. 500 mil é muito para um museu desses durante um ano inteiro? 500 mil é uma miséria! Um óbolo para manter um tesouro majestoso como era o Museu Nacional, para preservar parte significativa da cultura de um país. Uma quantia irrisória e aviltante diante do orçamento da União e da magnitude desse patrimônio brasileiro. Mas agora que está tudo destruído, o Ministério da Educação vai destinar R$ 10 milhões para reformas emergenciais. O quê é isso? Uma pilhéria de péssimo gosto? Como, num dia, do nada, surgem 10 milhões para um país que não podia dar ao museu nem 500 mil num ano inteiro? Surgem da culpa, do remorso – se isso realmente ocorrer a quem antes nada fez. Esses recursos emergenciais são o verdadeiro reconhecimento da desídia, são o atestado da incompetência. Vieram tarde demais.
Até agora, neste ano, o Museu Nacional recebeu apenas R$ 268,4 mil. Isso significa menos de 15 minutos de gastos do Congresso Nacional no ano passado – a Câmara dos Deputados e o Senado custaram mais de um milhão de reais por hora em 2017, de acordo com levantamento da Ong Contas Abertas. Isso – R$ 268,4 mil – é o que pagaria o funcionamento do Poder Judiciário durante menos de 2 minutos em 2017, ano em que a Justiça brasileira custou R$ 90,8 bilhões, segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Isso é muito menos que as expensas com um deputado federal, que nos custa mais de R$ 2 milhões por ano, segundo o Congresso em Foco. A última reforma do estádio Maracanã, que fica próximo ao museu, gastou cerca de R$ 1,3 bilhão, em preparação para a malfadada Copa do Mundo de 2014 – um montante 5.022 vezes maior que o destinado ao Museu Nacional até agora, no ano em curso – mas viva o país do futebol! E se formos para os numerários surrupiados pela corrupção neste Brasil, a manutenção digna do nosso Museu Nacional estaria garantida por milênios.
Mas de quê valem tais comparativos se cultura não dá voto? Cultura não tem bancada, não tem lobby no Congresso. O dinheiro para a cultura jamais, para a corrupção sempre. O que falta para a cultura e para a educação e para a saúde e para a segurança é o que sobra nas contas no exterior das nossas Excelências e nas malas e cuecas e nos infernos dos adoradores do deus-dinheiro.
Em tempos de bonança, a cultura não tem recursos. Em tempos de crise, a cultura não tem recursos. A culpa não é da crise. A crise é só a desculpa. A culpa, ou melhor, o dolo é do descaso deliberado, da negligência desejada, do não valorizar a própria memória do seu país, do seu povo.
Para a cultura jamais qualquer prioridade. Pensam os doutos ignaros Senhores: para quê serve a cultura? Se há cortes a fazer, que cortem na carne da cultura. Para a cultura só as sobras, só as migalhas, só os restos, só a lavagem. E, ainda assim, depois de demorados e arrastados processos. Destarte, podemos depreender que o Brasil trata a sua cultura como a uma porca. Uma porca macérrima, doente, ulcerada, largada no chiqueiro imundo e abjeto da ignorância e do descaso.
Mas quem disse que a cultura não tem prioridade? Bilhões de reais para a cultura rasa, perfunctória, tão profunda quanto uma tampa de cerveja, que não faz pensar, que não mexe com o intelecto, não mexe com a sensibilidade, mas só com a bunda, os sentidos e a lascívia, a cultura de massa, a cultura do show business, que, direta ou indiretamente, recebe bilhões em dinheiro público para patrocinar suas peças nefastas.
Mas sigamos assim, avante! Patrocinemos a cultura que nos torna incultos, toscos, brutos, insensíveis, por que não dizer: burros? Continuemos patrocinando a cultura do caos, do descalabro e da devassidão. E deixemos relegada ao abandono a cultura de raiz, vernacular, que remonta às nossas origens, que conta a nossa história.
Agora é um empurra-empurra de responsabilidades mais feio do que os escombros que sobraram do Museu Nacional. Todos estão errados, nesse circo de cinismo e frieza, mas, infelizmente, ao se culparem uns aos outros, numa reciprocidade encantadora, todos estão certos. Porque a culpa foi de todos. Todas as autoridades envolvidas, direta ou indiretamente, na gestão e manutenção do museu são responsáveis pela destruição, irresponsáveis pela cultura. Horrivelmente irresponsáveis. Levem nas costas esse crime contra a nação brasileira. Levemos todos, aliás. Que, em sendo brasileiros, a culpa, em alguma medida, é de todos nós.
Ao Museu Nacional faltou tudo. Faltou responsabilidade. Faltou planejamento. Faltou execução. Faltou ação. Faltou investimento. Faltou requalificação. Faltou restauro. Faltou servidor. Faltou vigia. Faltou água. Faltou bombeiro. Faltou patriotismo. Faltou carinho. Faltou cuidado. Faltou zelo. Faltou amor. Só não faltou o fogo. Sobrou o fogo da falta de vergonha na cara dos desidiosos. Não faltou o descaso, o desleixo, o abandono. Isso sobejou, transbordou nas beiradas. Os silentes, os indolentes, os negligentes, depois de concretizada a desgraça, sempre soltam a voz. E também não faltaram as notas de lamento. E suas assessorias de imprensa escreveram belas notas lastimosas, quase nos fazendo crer que realmente se importavam ou se importam. Isso não faltou. Isso sobrou. A lamentação farisaica verteu à farta, inda verte.
A despeito disso, permita-me a mim lamentar, Museu Nacional – asseguro ser um lamento sincero. Sinto tanto por não te ter conhecido, não te ter apreciado, não te ter vivido. Dói-me muito não ter dado tempo de fruir momentos da minha vida no seu espaço tão sagrado de história, cultura e ciência… Sinto tanto…
O Museu Nacional é o grande mártir da cultura brasileira. Deixa-nos na memória seu legado, ora perdido, e deixa-nos a lição do que ocorre com o patrimônio de que não se cuida: é consumido pelo fogo, da inação, da acídia, do desamor pela cultura. Fica-nos a lição. Fica-nos também o clamor tácito de todo o patrimônio histórico e cultural brasileiro, pedindo socorro, pedindo clemência, implorando cuidado e preservação para as atuais e futuras gerações deste país. Aprendamos com essa maldita aula magna de descaso, para que não deixemos sucumbir todo o patrimônio que ainda temos neste Brasil tão rico, e, infelizmente, ainda tão pobre. Pobre país, que não reconhece a importância de sua cultura. Pobre país, que não dá valor à sua memória. País inculto, rude, país agreste.
Mas aprendamos a grande lição. Nesse cenário de dilacerante tristeza, é bom pensarmos no muito e maravilhoso que ainda temos. É preciso ver com seriedade e com olhar estratégico a preservação do patrimônio cultural brasileiro, como sendo parte deste povo, da nossa história, da nossa identidade, do quê somos mesmo enquanto indivíduos e enquanto nação. Queira Deus que não percamos mais da nossa história, que não extingamos mais do nosso patrimônio. E, se formos capazes, que não só não deixemos acabar, não só não devastemos, mas, para além disso, que fortaleçamos, valorizemos e fomentemos nossa cultura.
Nesse sentido, há poucos dias, publiquei, aqui mesmo no Diário da Manhã, um artigo intitulado “Gabinete Literário Goyano: tesouro que clama!”. Nesse artigo, falei da desesperadora situação de abandono, do descaso e da carência de apoio para o Gabinete Literário – primeira biblioteca pública do Estado de Goiás, fundada em 1864, dona de um acervo riquíssimo e muito raro – e, em seu nome, também chamei a atenção de todos – dos Poderes Públicos, das instituições, da população vilaboense, de todo o povo goiano e do povo brasileiro – para que nos demos as mãos, unamos as forças para não deixarmos morrer este patrimônio histórico-cultural singular, e possamos, conjuntamente, revigorá-lo e preservá-lo para as gerações de hoje e de amanhã.
Nesse artigo, disse que “não podemos deixar acabar um dos mais raros e importantes acervos do nosso Estado, para que não mereçamos receber o vil e deletério epíteto de um povo que deixa perecer sua memória, e, de consequência, sua história”. Muito infaustamente, diante das cinzas do nosso Museu Nacional, devo assumir que me equivoquei demasiado. Diante do que fizemos com o tesouro sem preço do nosso Museu Nacional, resta clarividente que esse epíteto, infelizmente, já é nosso. Está tatuado na fronte da nossa nação. Devo, pois, retratar-me: o único que ainda podemos fazer é lutar para tentar sermos dignos de perder essa torpe alcunha.
Na certeza de, enquanto vozes da cultura, sermos muito pouco ouvidos ou nada ouvidos, encontramos, porém, no berro das chamas e das cinzas do Museu Nacional, um brado muito eloquente, que talvez mereça o mínimo de consideração. O Museu Nacional nos convoca e obriga a olhar com cuidado para todo o nosso patrimônio. Compele-nos à profunda reflexão. Enquanto brasileiros, não demos atenção, valor e cuidado ao museu mais antigo e mais importante do Brasil. Como goianos, não damos atenção, valor e cuidado à primeira biblioteca pública do nosso Estado e um dos nossos principais e mais raros acervos. Espero, com grande fé em Deus, que a tragédia não se repita.
O que deveria ser tempo de júbilo virou tempo de luto. Tempo de tristeza. O Brasil está de luto. Na semana da independência – qual? –, perdemos um templo sagrado da cultura e da memória da nossa nação. Na semana da independência, o cemitério da cultura brasileira, tetricamente, ganhou um ilustre falecido, chamado Museu Nacional. Quem viu viu. Quem não viu, nunca mais. O Brasil está de luto pela cultura do Brasil. O Brasil está de luto pelo Brasil. Demo-nos os pêsames a nós mesmos, meus compatriotas.
Sem embargo, antes do epílogo, não poderíamos deixar de felicitar o aniversariante… Parabéns, Museu Nacional! No seu aniversário de 200 anos, a sua destruição é o presente que o Brasil lhe damos!
(Rafael Ribeiro Bueno Fleury de Passos, advogado, escritor, poeta, cantor e viajante. Presidente do Gabinete Literário Goyano, da Comissão Permanente de Licitação do Mun. de Goiás e do Conselho Municipal de Turismo de Goiás. Delegado da Escola Superior de Advocacia na OAB Subseção de Goiás e Diretor do Museu da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos. Articulista do “Diário da Manhã”, desde 2011. Membro da Ovat (Organização Vilaboense de Artes e Tradições) e da União Brasileira de Escritores – Seção Goiás. (rafaelrpas[email protected]))