Uma bela história de Natal
Diário da Manhã
Publicado em 12 de julho de 2017 às 21:58 | Atualizado há 8 anos
Minha filha ficou acordada até altas horas da madrugada esperando pelo Papai Noel. Contaram para ela aquela história boba do velhinho de barbas brancas e roupas vermelhas, vocês sabem, não é? E a garotinha acreditou nessa infantilidade toda.
Tive então que vestir-me de Papai Noel a fim de atendê-la.
Ela me disse que desejava montar no alce do bom velhinho, pois lhe falaram que ele viria num desses animais. E onde haveria eu de conseguir um alce em pleno coração de Goiás?
Foi aí que me lembrei do Gabriel, um amigo legal pacas.
Botaria uns chifres nele e, de joelhos e mãos no chão, com um tapete de couro sobre o corpo, daria um bom animal. Até no jeitinho…
– Epa! Não senhor! Necas! Corta essa! Foi a resposta do amigo quando lhe propus o plano.
No entanto, depois de prometer-lhe um ingresso de cinema, acabou por ceder.
À noite, eu teria que bater à porta de casa puxando o “bicho” pelo cabresto.
– Mas você, gordão assim, num vai querer montar em mim, vai?
– Claro que não! Quando a garotinha abrir a porta, e nos ver, achará que já me “apeei”….
Diante da palavra “apeei”, o Gabriel franziu o sobrolho, retorceu a boca e quase desistiu. Mas, uma promessa de dar-lhe um guaraná, acabou por reanima-lo de novo.
– Mas você não vai me montar, hein?
– Sossegue e confie! Só teremos que satisfazer a vontade da criança, certo?
– Ok.
Quando a menininha abriu a porta e nos viu, foi aquela felicidade! Mandou-me entrar e queria que o animal entrasse também. O Gabriel estava de quatro, lá fora. E eu, mudando o tom da voz, e com o propósito de troçar o colega, disse à menina:
– Oh, oh, oh! O animal fica lá fora, filha… Onde já se viu botar um bicho feio daquele dentro duma casa limpinha como a sua?
– Num tem “portânci”, Papai Noel… Se ele sujar a casa, a mamãe limpa… Bota ele aqui, bota? Eu quero ver o cabrito do senhor…
– Num é cabrito, filha… É alce! Expliquei-lhe puxando o Gabriel para o interior da sala, ao que ele, disfarçadamente, me cutucou a barriga da perna, zangado pela alcunha de alce.
– Sente-se, Papai Noel. Convidou-me a pimpolhinha, no que atendi, prontamente. Depois, olhando o bichinho com aquela imensa curiosidade infantil, exclamou, juntando as mãozinhas:
– Oh, coitado do veadinho! Deve estar com fome. E saiu a fim de buscar algo para dar ao animal.
Diante da qualificação que recebera da garota, o Gabriel me olhou desapontado e falou, na ausência da pequena:
– Êeee! Essa menininha tá me desrespeitando! Sei lá o vexame que me aguarda pela frente. Maneira a barra aí p´ra mim, hein! Num vai satisfazendo os gostos todos da pequena, ou sairei daqui com complexo de inferioridade… Quanto a você, – falou-me, sério – meça as palavras aí, a meu respeito.
Mas a criança interrompe a conversa, entrando no momento com um prato de comida na mão:
– O senhor estava conversando com alguém, Papai Noel?
– Não, filha… Apenas trocava algumas palavrinhas com o animal aí.
– Ele fala?
– Não. Só berra.
– Oba! Faça-o berrar p´ra eu ver!
– Num tem jeito, filha. Ele só berra quando sente qualquer dor…
– Êêêêê! “Murmurou” o Gabriel, disfarçadamente. E a guria:
– O senhor disse alguma coisa, Papai Noel?
– Eu disse: êêêê!
– Por quê?
– É… Bom… Costumo falar sozinho…
– Todo velho gosta, num é?
– Sim. Mas, filha, o que você deseja ganhar no Natal?
– Antes, quero ouvir o veadinho berrar. Foi aí que o Gabriel bateu a pata no piso, espiando-me com aquele olhar de advertência…
– Pode dar um “pinicãozinho” nele, Papai?
– É… – tentei desviar o assunto para livrar o amigo da espetada – Acho melhor a gente prosear sobre os brinquedos…
– Ah, eu quero ver o bicho berrar! E fez carinha de choro.
– Está bem. Pode beliscá-lo. Mas, de leve…
– Oba! Foi por trás do animal e tentou o beliscão. Mas seus dedinhos escorregaram no couro da fantasia. A menina não desistiu. Pegou uma agulha dentro da fruteira ali mesmo sobre a mesa e a chuchou na carroçaria do bicho:
– AAAAAAAAAi! Injeção? Berrou o imbecil, quase levantando-se.
– Ele fala Papai Noel!
– Sim. No meu reino, lá no céu, todos os meus bichos falam…
– Quem os ensina?
– Um certo papagaio…
– E a comida? Falou o “alce”, uma vez que foi liberada, no momento, uma conversa para os animais.
A menina pegou o prato e o colocou no chão. Mas, querendo troçar do amigo, intervi:
– Filha, nunca se dá comida para bichos nos pratos limpos da casa. Eles contém micróbios perniciosos no focinho…
– O que faço então?
– Despeja a comida no chão.
– Eeeepa! Exclamou o Gabriel.
– Mas suja o chão Papai Noel.
– Suja nada! A comida está limpa!
– Mas a boca dele está suja, Papai Noel.
– NÃO! Gritou o bicho.
– Então, vou trocar de prato. E saiu, voltando em seguida, colocando o prato sob o “focinho” do Bié:
– Pronto. Pode comer sossegado. Agora, Papai Noel, eu quero que o senhor me dê, no Natal, uma panelinha, uma boneca, um vestidinho p´ru papai me levar à matinê, um caminhão cheio de balinha, uma caixa de bombom, um lenço p´ro papai…
– P´ro seu pai?
– É. Ele quase num limpa o nariz…
– AH, AH, AH! Riu o “alce”, gozando.
– Está bem. E que mais?
– Uma correia de rodar motor de bomba d´água…
– O quê?
– Uma correia bem grossa p´ra mamãe…
– Mas p´ra que ela quer isso?
– Ela disse que da próxima vez que o Papai pousar na rua, de manhã, quando ele chegar, vai lhe dar uma boa sova…
– E você gostaria que seu pai levasse uma tunda dessas?
– Afinal, ele precisa compreender que é homem casado, que tem uma filhinha bonita p´ra cuidar. Ele precisa ter mais RESPONSABILIDADE, o senhor num acha?
– AH, AH, AH! Ria o Gabriel, comendo.
– Está bem. E que mais quer?
– P´ra mim, é só isso. Agora, p´ro papai…
– Sim! Sim! Mas a menina, olhando para o alce, pediu:
– Deixe eu dar uma voltinha no veadinho, Papai Noel?
– Veado, não! Alce! A-L-C-E! Esclareceu o dito.
– Ele é instruído, num é, Pai Noel?
– Nem tanto, filha.
– Pode andar nele?
– Pergunte-o.
– Pode? O Bié meneou a cabeça negativamente, mastigando e metendo o bocão dentro do prato, abocanhando uma almôndega.
– Filha, – disse-lhe – o que mesmo queria pedir para o seu pai?
– Ah, sim! Um “desconfiador novo”…
– Um “desconfiador”?
– Sim… Ele precisa desconfiar de que, pelo menos uma vez por ano…
– Sim?
– PRECISA TOMAR BANHO!
– U-u-uuuh! AH, AH, AH, AH, AH! Gargalhou o Bié, chegando mesmo a sentar-se no chão, p´ra rir melhor, com os cascos na barriga.
– Que gracinha dele, Papai Noel! Sabe sentar e rir quase igual gente…
– É mesmo. Alce! Falei – acabe a sua comida! Precisamos ir embora…
Quando o Bié, ainda rindo, voltou ao prato, aliás já vazio, a menina esclareceu-o:
– Vamos, bichinho, lambe o prato… Todo bicho sabe lamber… – No que foi atendida pelo amigo.
– Papai Noel, será que devo lavar esse prato?
– Mas é claro! Prato onde animal come, gente num come!
– Mas esse prato aí num é de gente… – Foi aí que o Bié levantou a cabeça, olhando-nos com atenção, esperando ouvir a conclusão.
– Se não é de gente, de quem é esse prato?
– É DO CACHORRO DE CASA!
– Oh, oh, oh! Ri a valer do Bié, que, zangado, levantou-se e, caminhando às pressas, abriu a porta e tirou o time. É isto.
(Iron Junqueira, escritor)