Opinião

Uma crítica ao livro O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty

Diário da Manhã

Publicado em 4 de maio de 2015 às 02:22 | Atualizado há 10 anos

A lei tendencial da queda da taxa de lucro, exposta por Marx no Tomo III de O Capital, foi e continua sendo, objeto de vivas controvérsias. Não é para menos. Marx a definiu como “a lei fundamental do capitalismo”. Nessa lei está estabelecido o caráter historio e limitado do modo de produção capitalista. Dito de outro modo, nela exterioriza-se a contradição existente entre o conteúdo material da riqueza da humanidade – os valores de uso – e sua forma especificamente capitalista, o valor ou, sua expressão, o valor de troca. É uma tendência ou um movimento que trata da relação do genérico e do especifico e por tanto, fala da relação do capital com seu passado e sobre tudo, com seu futuro. Sua formulação e os problemas que são levantados não são simples. É expresso de uma forma emaranhada em grande parte Marx os deixou inconclusos – como não podia ser de outro modo-, ainda que lhe caiba o exclusivo e sagaz mérito de haver formulado esta lei. Sujeita a interpretações múltiplas, dogmáticas ou liquidadoras, desde a esquerda até a direita esta lei tendencial tem sido reiteradamente, objeto de profundas incompreensões.

O propósito de Piketty no seu livro O Capital no Século XXI, tem na verdade, um duplo designo. Por um lado, o economista francês transforma em Best seller a tendência inerente do capital à desigualdade, amenizada levemente durante um curto período histórico em virtude das duas Guerras Mundiais e a crise dos anos 30.  Semelhante regularidade na escrita de Piketty que fica ansioso para encontrar uma lei para explica-la. Entretanto, e pelo contrario, como contrapartida de seu funcionamento inicial, Piketty se ocupa de converter em Best seller à inexistência de qualquer lei própria do capitalismo que fundamente este fenômeno.  E em particular se encarrega de “bestelerizar” – se nos permite o neologismo – uma versão totalmente desfigurada do marxismo. Ocupa-se de colocar na mão e diante dos olhos de milhões – ainda que a custa de seu prestigio acadêmico – umas pouquíssimas páginas dentre as mais de 600 da edição brasileira, nas quais procura desacreditar a lei da tendência da queda da taxa de lucro para qual segundo Marx era “a lei fundamental do capitalismo”. Como parte de uma mesma manipulação, declara algumas vezes a viva voz que nunca “conseguiu” ler o livro cujo titulo lhe permitiu converter o seu livro no “mais vendido”. Perversa operação política de dupla face do acadêmico Piketty.

Assim, empreende Piketty um ataque contra a lei tendencial à queda da taxa de lucro, uma lei que a ciência e ele desconhece, a pesar de ter se tornar alvo de todos seus dados. Piketty diz que segundo Marx: “os capitalistas acumulam quantidade de capital cada fez mais importante, o que acaba conduzindo a uma queda inexorável e tendencial da taxa de lucro (…) e causa sua própria ruína”. Em um sentido similar em uma entrevista concedida, ele diz que na teoria de Marx a queda da taxa de lucro “(…) ira conduzir a uma catástrofe final e o fim deste sistema”. Com o objetivo de refutar esta desfigurada tese que ele atribui a Marx e apelando para dados da França e do Reino Unido, Piketty constata que: “(…) desde o século XIX, o rendimento puro do capital oscila em torno de um valor central da ordem de 4-5% ao ano, ou mais em geral, em um intervalo compreendido entre 3% e 6% por ano. Não existe tendência massiva em longo prazo, nem para a alta nem para a queda. O rendimento foi claramente ultrapassado em 6% logo após as enérgicas destruição e dos múltiplos choques sofridos pelo capital no curso das duas grandes guerras do século XX, porém retorno suficientemente rápido para os níveis mais baixos observado no passado. É possível que o rendimento puro do capital tenha caído ligeiramente em um longo período: comumente excedeu 4-5% nos séculos XVIII e XIX, enquanto que no inicio do século XXI parece se aproximar de 3-4 % à medida que a relação patrimônio/ renda volta a seus elevados níveis observados no passado.”.

Piketty conclui então que “a taxa de rendimento puro do capital é relativamente estável ao redor de 4%- 5% em longo prazo” e que “sem duvida não existe nenhuma força natural que necessariamente reduza a importância do capital e das rendas surgidas da propriedade do capital no curso da historia”. Certo, é que, como já se critico reiteradas vezes, Piketty iguala, devido a razões ideológicas – o conceito de riqueza (ou o de patrimônio) com o de capital. É verdade que isto lhe conduz a pensar o capital como uma somatória de objetos, como um acumulo de valores de uso, incorrendo em uma definição muito distante a de Marx. Por tanto, esta definição do capital como uma coisa e não como uma relação social, o induz a medir a taxa de lucro utilizando variáveis muito distintas das empregadas por Marx. Porém, o que nos interessa discutir aqui, é que mais além desse fato, e inclusive e se tomarmos por validade sua forma de medição, Piketty só refuta sua falsa interpretação da teoria e não a teoria mesmo.

Não exporemos aqui à lei da tendência a queda da taxa de lucro. Só ressaltaremos seu caráter tendencial, questão que Piketty repete, porém não compreende e que – diferente do que pretende refutar – longe de significar que desde o inicio do capitalismo até hoje, tem que se provar a existência de uma curva descendente. Alguns, no obstante, se utilizam de outro modo dos dados de Piketty, avaliada empiricamente, ainda que com oscilações, se provaria com esses dados o declínio. O que em todo, que os mesmos dados e segundo como se os disponha, pode se fazer múltiplas elucidações. Porém, em nossa interpretação do assunto, o caráter tendencial desta lei significa nada mais – e nada menos – que no curso dos distintos ciclos da acumulação ampliada, opera-se um processo lento e profundo, mediante o qual o capital incorpora uma proporção relativamente maior de trabalho morto (maquinaria, matérias primas, elementos auxiliares, etc.) do que de trabalho vivo (trabalho assalariado). Como o trabalho vivo é a única fonte geradora de mais – valia – trabalho humano não pago- e como o trabalho humano não pago é a única fonte geradora de lucro, a redução relativa de trabalho vivo na composição total do capital, gera uma tendência (e remarcamos a palavra tendência) da diminuição da taxa de lucro, que é a que avalia a relação entre a mais-valia e a soma entre o capital constante (maquinaria, matéria-prima, e auxiliares etc.) e o capital variável (força de trabalho). Porém, qual é a causa que impulsiona este movimento? Necessariamente devemos voltar à outra afirmação de Pikkety segundo a qual Marx, a fim de formular sua hipótese, haveria suposto – implicitamente, diz – um crescimento nulo da produtividade. Porém, uma fez mais Pekkety erra o alvo. Coincidentemente o crescimento da produtividade constitui a pedra angular da tendência da queda da taxa de lucro. E é assim, por dois motivos. Não só porque o aumento da produtividade impulsiona, segundo Marx e como veremos em seguida, o movimento descendente da taxa de lucro, mas também, porque, a mesma produtividade é uma das causas de contra tendência desse movimento e o anula muitas vezes e transformando-o, precisamente, em uma tendência. Por um lado, e em termos gerais, é o desenvolvimento das forças produtivas o que incentiva o aumento constante da produtividade, que por sua vez, vai refleti na incorporação progressiva de novas maquinas com maior nível tecnológico. De acordo com modo de produção especificamente capitalista, este movimento é permanentemente estimulado pela concorrência entre múltiplos capitais privados independentes.  Se para os capitalistas individuais em virtude da concorrência, este processo permite aumentar sua taxa de lucro, nos termos da classe capitalista em seu conjunto em longo prazo, quando as inovações se generalizam, opera uma aumento da composição orgânica do capital e a queda da taxa de geral de lucro. Porém, por outro lado, quando Marx expõe as tendência e contra tendência da lei, diz: “Se considera o enorme desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social ainda que seja nos últimos 30 anos, em comparação com todos os períodos precedentes – especialmente si se tem em conta a enorme massa de capital fixo que entra, além da maquinaria propriamente dita, no conjunto do processo social da produção -, a dificuldade que nos apresenta não é a que se ocupa os economistas até o dia de hoje – a de explicar a queda da taxa de lucro – mais sim a inversa: explicar porque essa baixa não é maior ou mais rápida. Devem atuar influencias de contra tendências que interferem na lei geral, dando somente o caráter de uma tendência, razão pela qual, temos qualificado a queda da taxa geral de lucro de uma queda em tendência.”.

E é precisamente o mesmo aumento da produtividade do trabalho, enquanto desenvolvimento necessário para aumentar a mais-valia relativa e baratear os elementos que compõe o capital constante, se tornando um fator chave da contra tendência da queda da taxa de lucro. Concomitantemente se interpõe outros múltiplos fatores que atuam no sentido contrario a lei, outorgando a ela o caráter de tendência. Entre eles, por exemplo, o aumento da mais – valia absoluta, a queda dos salários, sua estagnação ou crescimento em um ritmo menor, as próprias crises cíclicas – e com muito maior contundência, as guerras – operam simultaneamente destruindo ou diminuindo os elementos físicos do capital e o preço da força de trabalho. O padrão que determina que esta tendência opere como um movimento efetivo, mais além dos múltiplos fatores que a contrariam, se deriva do fato de que, enquanto o aumento da exploração do trabalho em suas formas absoluta e relativa possui um limite (a parte do trabalho pago não pode diminuir a zero), a acumulação do capital carece desse limite. Nada impedi que em novos ciclos da acumulação, a taxa de lucro volte a aumentar, ainda que o conjunto do movimento contraditório identificados adapta distintas fisionomias em cada momento especifico e, naturalmente, consequências importantes.

Piketty descarrilou no aspecto fundamental do tema. Ele quer demonstrar com medias matemáticas de longuíssimo prazo, o que em tal caso deveria ser exposto como um movimento e suas consequências no interior de cada período de acumulação.  Não a nenhuma maneira de verificar uma tendência dinâmica, que palpita no interior de períodos históricos concretos mediante a imobilidade fria de medias. E é no interior desses períodos históricos concretos, onde se produz esses movimentos profundos que impulsiona por sua fez e com força de necessidade o desenvolvimento das causas que o contrapõe. Isso significa, por exemplo, que as altíssimas taxas de rentabilidade da Segunda Pós – guerra – as que chamativa mente Piketty associa a um baixo nível de acumulação de capital – encontrando um final para o boom, entre o final dos anos 60 e inicio dos anos 70. Estes limites provocou o desenvolvimento de sinistras “forças contra tendenciais”. Leia-se, reaganismo-thatcherismo ou contra ofensiva neoliberal. Ditaduras selvagem nos países da periferia, restauração do capital onde havia sido abolido a propriedade privada, incorporação de massiva mão- obra chinesa – e da Europa do leste – a exploração do capital internacional e a utilização da China como plataforma de acumulação, precarização do trabalho, estagnação – ou quase – dos salários, destruição de conquistas sociais, diminuição de impostos para os ricos e ao capital corporativo, desregulamentação do movimento de capitais etc. A taxa de lucro do capital, como é evidente, se recompôs. O grau de sua recomposição, não obstante, ainda é matéria de estudo entre distintos autores que realizam estudos como Duméil, Husso, Shaik, entre outros. Porém resulta que as mesmas causas que atuam como contra tendência nesse movimento profundo do capital, tem consequências. E grande parte das vezes são essas consequências e não a própria tendência descendente da taxa de lucro, que desatam a crise. Por exemplo, o desenvolvimento da financeirização – e as consequências das bolhas de créditos como estimulo ao crescimento durante as ultimas décadas, que conduziram a crises como a de 2008 – junto com a debilidade dos investimentos e crescimento em declínio da produtividade do trabalho, são indicativos de um excesso de acumulação de capital. Dito excesso resulta de um fenômeno derivado do movimento profundo da taxa de lucro na medida em que as mesmas causas que provocam sua queda condicionam uma acumulação acelerada de capital com o objetivo de aumentar a massa de lucro. Provavelmente os efeitos deste processo se manifestem na atualidade como herança do período do fim do boom do Pôs- Guerra, intensificado durante os últimos anos com a concentração de capitais em regiões de alta rentabilidade, como por exemplo, nos mostra o caso da China. A questão se torna complexa no presente em que as intervenções estatais – que em parte respondem pelos riscos da internacionalização do capital -, atuam limitando os efeitos destrutivos das crises. Além do método e dos modelos neoclássicos que tanto agrada Piketty, interessa ressaltar e assinalar o fato de que nos períodos de baixo crescimento como o atual, a rentabilidade do capital seria maior do que o crescimento econômico. Pode-se estabelecer como hipótese um nexo entre essa eventual relação, a sobre acumulação de capitais e o processo de recuperação da taxa de lucro das ultimas décadas que não condiz com um aumento da acumulação ampliada. Por outro lado, o aumento da desigualdade – tema central da investigação de Piketty – e base da debilidade da demanda de consumo que tanto aflige os economistas do mainstream, é um resultante da contração salarial e perda de conquistas derivadas das contra tendências destinadas a recuperar a taxa de lucro. Porém Piketty tem como missão prioritária fugir, como se foge da peste, de toda regularidade que questiona a existência de um sistema que ele considerou como parte da natureza humana. O medíocre ataque à tendência a queda da taxa de lucro, se inscreve nesta operação que é a pedra fundamental de seu programa.

“Certo, é que, como já se critico reiteradas vezes, Piketty iguala, devido a razões ideológicas – o conceito de riqueza (ou o de patrimônio) com o de capital. É verdade que isto lhe conduz a pensar o capital como uma somatória de objetos, como um acumulo de valores de uso, incorrendo em uma definição muito distante a de Marx. Por tanto, esta definição do capital como uma coisa e não como uma relação social, o induz a medir a taxa de lucro utilizando variáveis muito distintas das empregadas por Marx.”

(Ney Gonçalves, escritor e pesquisador, autor dos livros: Valor e Crise, Marxismo, Estado e Crise do Capital e Introdução ao Marxismo e Conceitos Básicos da Analise Econômica)

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