Opinião

Uma injustiça da Justiça

Redação DM

Publicado em 4 de fevereiro de 2017 às 00:38 | Atualizado há 8 anos

Cada dia que passa, a gente mais se sente pasmo com as atitudes da Justiça, principalmente nesta época, em que o brasileiro clama pelo fim da corrupção. E quando alguém, com mais coragem, ousa aplicá-la, recebe um balde de água fria.

Quando escrevi aqui um artigo sobre o afastamento do colega Ari Queiroz, por direta influência de um filho do ministro. do STJ Francisco Falcão (então Corregedor Nacional de Justiça no CNJ), recebi um e-mail do juiz catarinense Fernando Cordioli Garcia, da comarca de Sombrio-SC, solidarizando-se com Ari. Passamos a trocar e-mails e zape-zapes, e acabou por formarmos um grupo chamado “Juízes em luta”, que hoje é composto de cerca de 20 magistrados, de Goiás, Minas, Ceará etc., todos sofrendo assédio moral e perseguição, principalmente pelos seus próprios tribunais ou diretamente por membros do CNJ.

Logo depois, ouvi pela internet um minucioso vídeo do jornalista Ricardo Boechat, da Band, que fez minucioso relato do porquê de Cordioli estar sendo assediado moralmente. Senti, desde o início, que Cordioli era adepto, como eu, do Direito Alternativo, defendido pelo ex-desembargador gaúcho Amilton Bueno de Carvalho, um direito livre surgido com a modernidade que expressa a necessidade de mudar a ordem jurídica vigente. O importante não é apegar-se às excessivas formalidades para aplicar a lei.

Fernando Cordioli tomou posse aos 26 anos como juiz substituto e foi aposentado aos 36, na entrância final, passando por diversas comarcas catarinenses, inclusive a mais difícil delas, depois de para ir lá punido com remoção compulsória. Sendo extremamente dedicado no seu trabalho, viu-se obrigado a uma forma peculiar de aplicar a lei, diante da tamanha corrupção que assola o país, o que incomodou os poderosos e colocou em polvorosa o Ministério Público catarinense, que acionou seu próprio tribunal.

Iniciou sua carreira de juiz por São Miguel do Oeste, passando por Anchieta, Mondaí, Pinhalzinho, São Carlos, Descanso, Palmitos, Joaçaba, Concórdia, Herval do Oeste, Catanduvas, Campos Novos, Capinzal, como juiz substituto, muitas vezes cumulando varas por meses, sem nunca ter recebido uma representação qualquer ou uma chamada formal de seus corregedores, pelo menos até chegar a Otacílio Costa, na serra catarinense. Pelo contrário, no momento em que foi afastado pelo TJ-SC, os jurisdicionados até fizeram um abaixo-assinado pela sua volta.

Em 2010, ele começou a aparecer na imprensa daquele Estado. Repercutiu a menção de “Juiz Coragem”, pelo colunista Cacau Menezes, no “Diário Catarinense”, por conta de ter pessoalmente, presentes uma guarnição tática da PM e um Promotor de Justiça, dado cumprimento aos efeitos de uma sentença em ação civil pública, demolindo a casa de um vereador de Joaçaba, que estava em área de preservaçãp ambiental.

Muitas decisões, sobretudo em ações coletivas, o então juiz substituto tomou, muitas em processos que estavam se arrastando há anos e até décadas. Por isso apareceu em um blog o ativista da internet mais acessado de Santa Catarina. No blog “Tijoladas do Mosquito”, de Amilton Alexandre, Cordioli era um dos poucos representantes da Justiça que não era objeto das suas “tijoladas”. Denúncias gravíssimas, onde vazavam documentos e informações oficiais que chegavam cada dia mais ao seu blog, dor de cabeça para políticos, deputados e governador corruptos, juízes e promotores não raro injuriados e ofendidos pelo blogueiro que vinha fazendo uma frente de combate à corrupção no Estado. Depois, Mosquito apareceria morto, havendo suspeitas sobre seu “suicídio”.

Em 2012, o “Juiz Coragem” leiloou pessoalmente dois carros do prefeito de Palmeira-SC em praça pública, para pagar uma condenação por desvio de verba pública, e o alcaide, saindo da cidade para ir a Florianópolis num terceiro carro, também objeto de investigação por fraude a licitação, teve-o apreendido, pois Cordioli pediu que a Polícia Rodoviária Federal interceptasse o veículo, e o prefeito ficou a pé no acostamento.

Na mesma época, como o Ministério Público se recusou a pagar honorários de peritos em um processo contra outro ex-prefeito, que tramitava desde 1989, ele pediu o auxílio do 10º Batalhão de Engenharia do Exército para avaliar a casa do réu: um destacamento cercou a casa, fotografou tudo, avaliou-a, e em seguida, quando estava prestes a adjudicá-la na execução contra o ex-prefeito para transformá-la em um abrigo de órfãos, foi afastado por ordem do tribunal.

Numa ação ambiental, ele determinou que a Fundação de Amparo ao Meio Ambiente (FATMA) derrubasse a casa de um vereador erguida em área de preservação. Como a ordem não foi cumprida, Cordioli, com a ajuda de um operário, fez o serviço pessoalmente, demonstrando que os laudos de impossibilidade da FATMA eram fraudulentos. E descontente em ver que as penas alternativas não eram cumpridas, ordenou que todos os apenados comparecessem ao quartel da PM aos sábados, de manhã, recebendo-os de pá na mão e comandava operações de tapa-buracos nas ruas de Otacílio Costa, com alto valor pedagógico, diante da exposição ao público, o que inibiu a criminalidade. Em audiências criminais preliminares, mandava arquivar processos de pessoas que sabidamente enfrentariam longas batalhas judiciais por coisas de nonada.

Em uma ação penal, um homem rico, acusado por crime ambiental, porque podara alguns pinheiros, o juiz concluiu que a denúncia era perseguição política e o inocentou, argumentando que “podar árvores não é crime”. Quando era pedida pela polícia uma prisão, ele despachava diretamente à mão, no rosto da própria representação do Delegado, para poupar a burocracia e a espera pelo Promotor que nem sempre estava no fórum, o que atrasava a Justiça.

Vereadores procuraram-no para se queixarem de postos de saúde sem médicos e sem remédio, e Cordioli não teve dúvidas: encaminhou a reclamação e ensinou-lhes como fazer um processo de “impeachment” contra o prefeito, tendo outras duas vezes, ele próprio, oferecido representação por crime de responsabilidade. Um deles foi arquivado e outro foi suspenso por liminar do TJSC, quando o Prefeito estava prestes a ser afastado. No TCU, o Prefeito acabou condenado por desvio das verbas da saúde nos postos.

Como cidadão comum, Cordioli andava de bicicleta pelas ruas, morava na cidade e não se importava muito com suas roupas.

Poucos dias após afastado pela primeira vez pelo TJ-SC, em 2012, o magistrado concedeu uma entrevista ao UOL, quando afirmou: “Dizem que sou louco, mas pelo menos não me chamam de corrupto. Sou louco por querer fazer a máquina do Judiciário funcionar”.

O vídeo elogioso de Ricardo Boechat tem rodado o Brasil há alguns anos, desde 2013, quando Fernando Cordioli foi tachado pelo seu corregedor, desembargador Vanderlei Romer, de ser acometido de problemas mentais, ou seja, de louco. Com essa desculpa, para sua “proteção” e “auxílio”, fora liminarmente afastado do cargo no final de 2012, meses antes de aparecer uma portaria acusatória.

Mesmo depois de ter passado na junta médica, e sido reintegrado no cargo em 2014, uma infinidade de procedimentos foi instaurada de ofício contra o juiz que incomodava os poderosos e os semideuses do tribunal barriga-verde. Mas sua intenção não era aparecer e tampouco tornar-se um rebelde, por distribuir a justiça a seu modo.

Mas, paradoxalmente, a própria Justiça decidiu voltar a punir um magistrado que, provando não ser corrupto, apenas estava dando sua parcela de relevante serviço no combate à corrupção. Ele foi aposentado em julho de 2016, sem ser acusado de corrupção ou improbidade, cumprindo-se a profecia de Ricardo Boechat em 2012, que antecipou que o juiz só era louco por um motivo: enfrentar uma luta que não poderia vencer.

Fazer justiça não é apenas cumprir a lei, mas sobretudo ter coragem de decidir, e o juiz catarinense era um raro exemplo.

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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