Opinião

Uma mulher e os caminhos

Redação DM

Publicado em 14 de março de 2016 às 00:31 | Atualizado há 9 anos

Havia uma mulher no meio do caminho. Havia muitas mulheres no meio do caminho.
Val era empregada doméstica submissa, obediente aos patrões de classe média alta, São Paulo capital. Bastou chegar sua filha Jéssica, de Pernambuco, a quem não via há dez anos, para fazer vestibular na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), para colocar tudo, sua vida, suas relações, de pernas pro ar.
“Essa piscina não é pra teu bico”, diz Val para Jéssica, ao ver sua vontade de cair na água. “Tu é metida, que eu sei”, diz a mãe para a filha desenvolta, que consegue o quarto de hóspedes da casa dos patrões da mãe –‘mais uma suíte’-, enquanto procura casa para morar.
Jéssica fala para a mãe, “Não me acho melhor. Só não me acho pior”, quando esta a recrimina por ser muito ‘metida’. Jéssica mostra sua independência de jovem que se conscientizou com um professor de história e quer fazer arquitetura para ‘mudar o mundo’.
“Diz pra tua filha que a partir de agora ela fica da cozinha pra lá”, decide a patroa, dona Bárbara, vendo que a jovem estava colocando em jogo as relações de poder da mansão, subvertendo o dia a dia da casa. O ‘fica da cozinha pra lá’ é o que sempre aconteceu com as empregadas domésticas que vinham do Nordeste trabalhar em São Paulo e com as mulheres em geral, e ainda hoje, quando ganham menos que os homens, não ocupam espaços de mando e decisão, Mesas e Painéis são masculinos. Jéssica não espera o dia seguinte. Abandona a mansão de noite, debaixo de chuva forte, Val correndo atrás dela desesperada.
E acontece o inesperado. Jéssica faz 68 pontos e passa no vestibular. 68!, exclama a mãe, sem saber exatamente o que isso significa, mas sabendo que sua filha, filha de pernambucana, filha de doméstica, nordestina tinha passado num vestibular muito difícil, quase um milagre (passam-me na cabeça que o número 68 pode não ser mera coincidência). O filho da patroa não passou. Acaba indo para a Austrália por seis meses, ‘espairar’ um pouco.
Jéssica conversa com a mãe, reclamando que esta não a visitava em Pernambuco. Val diz que sempre mandava dinheiro. “Quanto mais eu queria voltar, eu não voltava.” E quando descobre que Jéssica tem um menino, que ficou em Pernambuco, diz: “Eu pago a passagem. De avião.” O ‘de avião’ é dito com o orgulho de quem pode pagar e de quem sabe que agora pobres e trabalhadores podem andar de avião e transformaram, como disse alguém, o aeroporto numa rodoviária.
Val demite-se do emprego, vai morar com a filha e trabalhar como autônoma.
O filme Que Horas ela volta?, de Anna Muylaert, do qual estou retirando falas e personagens, retrata o que se passou no Brasil nos últimos anos. “Esse país tá mesmo mudando”, diz dona Bárbara, ao descobrir que a jovem pernambucana, filha de empregada, conhece o mundo, sabe o que quer, enfrenta São Paulo e tem ideias na cabeça.
As mulheres estão se libertando. Há muito por andar, há muito por fazer. Os caminhos são diversos. Não basta uma mulher na presidência da República. Diz Ligória, uma agricultora participante da VII Marcha pela Vida e pela Agroecologia, com 5 mil mulheres, em Areial, Paraíba, dia 8 de março deste ano: “Eu planto, colho, trabalho na construção civil como ajudante de pedreiro e não tenho medo de enfrentar a vida, porque quando a gente luta, consegue. Vou continuar marchando.”
Ou nas palavras de Zeneide Balbino, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Areial, na Marcha que é “uma demonstração de força e poder de mulheres que antes buscavam água barrenta por quilômetros com uma lata na cabeça” (O Grito de Luta das Mulheres do Semiárido, Najar Tubino, Carta Maior): “Nós precisamos valorizar o que temos no Pólo da Borborema – as nossas sementes crioulas, sementes da paixão, as galinhas capoeiras. Porque já tem empresas querendo trazer raças de fora, que precisam de ração, de milho transgênico. Temos que defender o nosso projeto de agroecologia, que está sendo ameaçado pelo agronegócio.”
E assim elas podem cantar ‘Sem Medo de ser Mulher’, como cantaram na VII Marcha pela Vida e pela Agroecologia, conhecida canção dos movimentos de mulheres e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), de Zé Pinto: “Pra mudar a sociedade/do jeito que a gente quer/participando sem medo/de ser mulher/porque a luta não é só dos companheiros,/pois sem mulher a luta vai pela metade/sem medo de ser mulher/fortalecendo os movimentos populares/participando sem medo de ser mulher/na aliança operário e camponesa participando sem medo de ser mulher/ pois a vitória vai ser nossa com certeza/participando sem medo de ser mulher.”
É a solidariedade de classe nestes tempos difíceis e de urgências. É libertar-se das amarras, da opressão, da desigualdade. É superar a violência doméstica e do cotidiano. A gente do povo erguendo a cabeça com dignidade. É construir caminhos de solidariedade. Viva as mulheres no Dia/Semana Internacional da Mulher!

(Selvino Heck é diretor do Departamento de Educação Popular e Mobilização Social da Secretaria Nacional de Articulação Social. Secretaria de Governo da Presidência)

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