Vale do Paranã: crendices e superstições
Redação
Publicado em 21 de outubro de 2015 às 23:51 | Atualizado há 10 anosOs termos crendice e superstição, que parecem ter o mesmo significado, se diferem por conotações sutis caracterizando duas atitudes subjetivas, respectivamente no nível social e no nível individual. A crendice é de caráter mais abstrato e pontua valores elevados ao nível de religião. Preserva fatos transcendentes que são cultivados por uma comunidade. A superstição manifesta-se mais a nível individual e identifica-se com o medo. As entidades abstratas podem ser substituídas por objetos materiais e até por palavras ou gestos que sugestionem as pessoas impressionáveis. Do ponto de vista psicológico, existe uma relação entre o medo e a superstição – segundo observa o doutor Frank Caprio em seu livro Ajuda-te pela psiquiatria – podendo esta ser chamada de medo cristalizado.
As crendices, como sentimentos generalizados, revelam uma camada de valores que preexistem ao indivíduo e sobrevivem a ele: pertencem a uma tradição. As superstições, não obstante tenham sempre terreno fértil no campo social, podem ter sua origem, vida e morte com o próprio supersticioso. As crendices são, portanto, de natureza social e pertencem às sociedades (geralmente primitivas) que as cultivam. As superstições grassam em todos os meios e manifestam-se em todos os níveis. Tanto pessoas simples do povo quanto reis e imperadores, podem se mostrar supersticiosos em momentos de vacilação ou receio ante o desconhecido.
As superstições geralmente surgem por analogia de fatos segundo critérios puramente subjetivos. Exemplifiquemos: a pessoa que teve de se mudar de casa antes que determinada planta produzisse os primeiros frutos, associa o fato da mudança ao de ter plantado aquele tipo de árvore (um coqueiro, por exemplo). Daí surge a crença supersticiosa: quem planta coqueiro na frente da casa muda-se antes dele produzir frutos. A prova ou reforço de uma superstição vem sempre associada a um caso concreto acontecido a alguém. Lembra-me meu tio Altino, que costumava derrubar casas de maribondo ao vê-los se arrancharem nas residências, acreditando que eram portadores de aviso de morte ou de mudança do dono da casa.
Objetos mágicos
Podem ser quaisquer objetos de simpatia aos quais se atribui função de afastar males ou de atrair sorte. Dentre os objetos mágicos estão o amuleto, patuá, breve, talismã, e mais popularmente, dente de jacaré, exporão de arraia e até ramos de alecrim e de arruda. Comecemos pelo último.
Ramo de arruda dá felicidades. Ramo de alecrim é contra inimigos de traição. O alecrim diz-que nasceu no lugar onde Nossa Senhora jogou a primeira água em que banhou o Menino Jesus. Esporão de arraia serve para reter fugitivo. Fincar o esporão de arraia no rastro do fugitivo: a pessoa começa a inchar os pés e fica impossibilitada de caminhar. Dente de jacaré deve ser usado na fase da dentição. É atado ao pescoço da criança ou no braço, junto com um pedacinho de fumo, para livrar de quebranto e mau olhado.
Talismã é o objeto ao qual se atribui poder mágico, usado em benefício de quem o conduz. Pode ser de metal, de pedra, madeira ou papel, contendo geralmente frases cunhadas ou caracteres simbólicos. O talismã é tão antigo quanto as primeiras culturas e já fora utilizado por nobres e imperadores que viam nele poderoso instrumento de sugestão e força psicológica. Dizem que o cantor Roberto Carlos não se afasta de uma pulseira de prata que usa no braço direito.
Breve é uma oraçãozinha contida num patuá (amuleto) que deve ser trazido ao pescoço. Hoje se usam orações inteiras (não mais breves) que devem ser copiadas e reproduzidas por quem as receba para garantir o recebimento de uma graça (do contrário, o castigo de uma desgraça).
Patuá – termo de origem africana – designa saquinho de couro ou de fibra, para conter coisas miúdas. Explica Getúlio César que “patuá atualmente é um pequenino saco de pano ou de couro onde os curandeiros trazem as suas rezas forçosas e curadoras.” O uso do patuá está associado aos casos de mandinga ou feitiçaria.
Amuleto é geralmente usado como pendente atado ao pescoço. O amuleto é uma criação universal do folclore, tem incidência em todos os países e adapta-se a todas as culturas. Na França é amullete, na Alemanha é angehenne (pendente), na Arábia é tanizat e os antigos judeus o chamavam de philacterion, segundo explica Getúlio César no seu livro Crendices, suas origens e classificação. Além de amuletos religiosos, como relíquias, agnus dei, água benta, escapulário, medalha milagrosa e outros, usam-se em grande quantidade os amuletos profanos, como patuás, breves, talismãs, e objetos diversos.
Crendices populares
As crendices populares, apesar de não ficarem limitadas a uma região, servem também de referência regional, refletindo, por exemplo, práticas cotidianas de vida ou formas de relação do homem com a natureza. É interminável o quadro de crendices e superstições, mas a título de curiosidade, cito alguns exemplos. Colocar vassoura detrás da porta ou jogar sal no fogo: livra-se de visita incômoda. Descascar laranja com faca: se as tiras da casca saírem inteiras, é casamento na certa. Espirro de gato, sinal de chuva. A quem espirra deve-se dizer Saúde ou Deus te ajude. A manifestação de respeito ao espirro está na história dos povos mais antigos. Dizem que São Gregório Magno, no século VI, curava pessoas que espirravam acometidas de gripe, exclamando a cada espirro: Ave Maria!
Por sua vez, também as superstições servem como forma de leitura do comportamento social, apesar de seu caráter subjetivo, sendo criadas geralmente por pessoas sugestionáveis. Há superstições que refletem atitudes didascálicas ou educativas, com objetivo de orientação de conduta. Estas são quase sempre enunciadas com a expressão “faz mal”, impondo receio a quem contrarie a norma. Exemplos. Faz mal mulher grávida passar por baixo de cabresto de burro: retarda o nascimento da criança (cria de burro nasce com um ano). Faz mal criança botar peneira na cabeça (o que é falta de higiene): faz retardar o crescimento. Toda criança quer crescer, portanto evita. Outras vezes são os próprios pais que colocam a peneira na cabeça das crianças, quando estas estão crescendo muito. Faz mal cruzar as mãos sobre a nuca: agouro de morte dos pais. Toda criança evita este gesto, pesando em tão temerosa perda. Faz mal socar em pilão vazio: agouro de morte da mãe. Pior que o perigo de acidente é anunciar a perda da mãe a uma criança. Faz mal deixar o sapato com o solado para cima, ou o tamborete com o acento para baixo (assim a casa é mantida em ordem).
Sinais de agouros
A maioria das superstições regionais está relacionada a aves e animais, simbolizando, como na concepção mágica, as forças da natureza. As aves – acredita-se – são portadoras de bons ou maus augúrios. Exemplos. Cachorro uivar: mau agouro em família. Gado quando chora no matadouro: morte do dono. Burro espojar três vezes e virar o corpo pra cima (o que geralmente burro não faz): é ele mesmo que está para morrer. Cajueiro plantado na frente da casa: o dono muda antes de ele dar frutos. Arco-íris: quando ele vai beber no rio, quem entrar nele, sendo homem, vira mulher e sendo mulher, vira homem.
Aves agoureiras
Coruja piar no telhado, ou na cumeeira da casa: o morador está para morrer. Ou será alguma mulher que morrerá de parto. Cauã, ou côa, cantar ao sol-entrando: aviso de morte. A cauã tem um canto melancólico e agoureiro que se traduz como – ó a cova!, ó a cova! Quando a cauã canta cedo, tem outra linguagem – ó coã! ó coã! ó coã! – é porque vai chover. Urubu – quem mata urubu (ou gato), tem sete anos de atraso. Beija-flor – sendo parda de coleira branca: má notícia. Beija-flor preta: aviso de morte. Beija-flor verde: esperança e boa nova. Galinha quando bate asas e canta feito galo, três vezes seguidas: é alguma moça da redondeza que está para fugir. Galinha quando grita assombrada de noite, fazendo quiéu! quiéu! quiéu!, é alguma mulher que vai morrer ou parir.
É belo o mundo do folclore em que as simples crendices e superstições bastavam para controlar o comportamento social mantendo os indivíduos sob o poder invisível das forças da natureza, estas por sua vez subordinadas às leis divinas. Ao contrário das falidas leis de hoje que não mais controlam os indivíduos sob o poder abstrato do estado, quando homem se tornou novamente lobo do próprio homem.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa.E-mail: [email protected])