Vínculos de família
Diário da Manhã
Publicado em 5 de dezembro de 2017 às 22:06 | Atualizado há 7 anos
Pouca gente, talvez, tenha tomado conhecimento de um drama em família, que se desenrolou, há cinco anos, na cidade de Recife, numa modesta casa no subúrbio de Casa Amarela, Uma família inteira sacrificando-se, em silêncio doloroso, para não se afastar de um louco, filho e irmão. Três espíritos acessos para velar por outro que se apagou. Uma casa de portas fechadas há cinco anos, para que ninguém, lá fora, suspeitasse da tristeza que reinava lá dentro. Três existências aniquiladas para que uma, que já não era bem existência, fosse menos desgraçada. A história me foi contada por um parente, em traços rápidos, mas profundos. Aos 25 anos de idade, o filho mais velho de uma senhora viúva, fora vítima de um acidente de veículo, no qual morreram dois jovens que o acompanhava, quando embriagado dirigia o carro em alta velocidade, na estrada, veio a precipitar-se, numa curva, ribanceira abaixo. Houve, de súbito, gritos de medo e de dor, sons de vidros quebrando, e dois corpos já sem vida horrivelmente machucados cobertos de sangue. O terceiro corpo, o do jovem filho da viúva, foi encontrado ainda com vida, fora de veículo, e levado às pressas para um hospital, permanecendo lá por um mês. No final deste período os médicos deram um diagnóstico trágico: O filho da viúva estava condenado à loucura devido às graves lesões cranianas sofridas, por ele, no acidente. Não se sabe se pela robustez do rapaz, ou pelas preces de sua mãe, ele venceu a mote, mas caiu derrotado nos braços da insanidade mental.
Um ano ficaram separados, o louco e o seu anjo da guarda. Um ano de inquietação e ansiedade. Um ano de viagens constantes e penosas entre o subúrbio longínquo onde morada e o soturno estabelecimento para aonde ele fora, depois do acidente. Obtida a desilusão da ciência, a triste e piedosa mulher, modelo de mães desventuradas, pediu que se os doutores não pudessem restituir a razão ao seu filho, que o entregasse, restituindo-o ao seu carinho. Poderá fazer o amor aquilo que não podera a medicina. Talvez a dedicação e o amor de mulher consequisse o que a sabedoria dos homens não conseguiu. E se nada conseguisse, era o seu filho, consagrar-se-ia a ele. E começou o sacrifício desta vida viva, àquela vida morta Nunca mais a pobre mãe transpôs a porta de seu lar para uma visita, ou para um passeio. Aquele filho era o seu mundo. Acompanhava-o pela casa fechada,como se fosse a sua sombra na sombra. O que ele destruía, num momento de fúria, ela consertava mansamente, sem uma palavra de recriminação. Quando ele dormia o seu sono de enfermo, ela acariciava os cabelos longos e assanhados, agora adulto, como fazia quando ele era criança. E quando o louco se erguia, com um salto, no meio da noite se pondo a uivar e andar, ela o acompanhava a dirigir-lhe palavras de ternura, para dirigir-lhe o cérebro através do coração. E cinco anos assim se passaram.
Pouco a pouco, porém, a fraqueza daquela mãe foi se tornando impotente para conter a insânia do filho. Nu e imundo, cabelos e barba à altura do peito e do ombro, transformaram-no em um monstro. Queria abrir a porta e sair para a rua, correr, fugir. E, fez-se necessário fabricar uma jaula para conter o louco, e os irmãos construíram uma prisão, um curral grosseiro e seguro para guardar a fera humana, o bicho cristão em cujas veias corria o seu sangue. Doia-lhes muito aquilo, mas era preciso. Antes aquele tormento, a dor de vê-lo urrar e debater-se dia e noite, do que o suplício da separação. Ali pelo menos ele teria carinho, teria atenção materna. E começou uma nova etapa daquele drama. Despido, coberto apenas pelos cabelos e barba, a infeliz criatura baixou a mais dolorosa animalidade. No seu curral, cujo higiene se tornou difícil, debatia-se às vezes nas horas de crise, em que não encontrava a bebida alcoólica por perto. Para acalmá-lo, faltava-lhe alguma coisa, algo que o tornara dependente do uso. Depois de violentas crises, vinha o silêncio triste e agoureiro, quebrado apenas pelas palavras meigas que a velha mãe lhe dirigia de fora, e que ficavam sem atenção e resposta. E, durante todo o tempo, esteve sempre a guardar-lhe a porta da jaula, e a dormir com a cabeça apoiada nas mãos. Até que um dia, o louco viu de olhos parados, um caixão negro, no meio da sala, colocado sobre duas cadeiras, e nunca mais lhe apareceu o vulto angêlico à porta da prisão.
Morta a velhinha que velara a loucura do filho desventurado, era de se esperar que os irmãos o recolhessem ao hospital. Quem cuidaria dele na casa deserta? Mas, ao morrer a velha mãe lhes pediu que não abandonassem o irmão desgraçado. Que se recordassem do tempo em que eram pequenos e bancavam juntos, e não o entregassem aos descuidos de mãos alheias. Continuassem aquela caridade. E morreu consolada, na certeza de que os filhos lhe atenderiam as súplicas. Resolveram os irmãos que enquanto um trabalha, o outro vai para junto da jaula, ou proceder a limpeza do antro em cujo canto o irmão louco se acocora desconfiado e triste. Uma vida útil, voltada toda ela,a outra inutilizada. Uma família inteira destruída pelos deveres da solidariedade do sangue, provada na desgraça. Um grande drama finalmente, cujo autor se esconde, não se sabe onde, mas com certeza preparando outros espetáculos com cenas iguais, ou mais trágicas do que estas, vividas e odiadas a um só tempo, um drama criado e produzido pelo ACIDENTE, fantasiado de fatalidade da vida.
(Edmilson Alberto, via e-mail)