Fernando Henrique torce contra ACM
Diário da Manhã
Publicado em 5 de julho de 2016 às 01:47 | Atualizado há 4 mesesVolume II, página 35 – 5 de janeiro de 1997 – “São quatro horas da tarde. Eu dizia ontem, antes de dormir, que se o Antônio Carlos for eleito presidente do Senado, é preciso que haja uma compensação para o PMDB. Não sei se o PMDB vai querer o Ministério da Justiça. Alguns podem vir a ser ministros, o Aluysio, por exemplo. (…) Os calos para o PMDB vão ser o ministério da Justiça e dos Transportes. Há a questão delicadíssima do Iris Rezende”.
Esta frase revela o estado de ânimo de Fernando Henrique Cardoso. ACM na Presidência do Senado não lhe era apetecível. Mas não podia deixar que Luis Eduardo nem de longe desconfiasse disso. O PFL era o aliado preferencial de FHC. Foi partido coligado, pelo qual se elegeu o vice-presidente, Marco Maciel. O PMDB vinha ajudando informalmente o governo, graças, sobretudo, aos bons ofícios de Iris Rezende.
O PMDB dirige o Senado, através de José Sarney. O PFL e outros partidos entendem que é preciso alternar o poder. O PMDB já havia arrancado o compromisso do PSDB e do PFL de ficar com a presidência da Câmara. De fato, Michel Temer acabou eleito presidente.
Problema, no Senado, é que o peemedebista Iris Rezende cismou que queria ser presidente da casa. “Hábil e discreto”, como FHC o qualificava, Iris cabalava votos na maciota. Pelos seus cálculos, seria eleito presidente pelo voto, se houvesse disputa. O voto era secreto. Iris só pedia uma coisa a FHC, que não se metesse. O presidente diz em seu diário que não se meteu. Não queria se envolver.
Talvez tenha escapado a FHC que a insistência do PMDB em levar a Câmara e o Senado fosse uma estratégia para cercar o governo e entrar nele com mais força. Em vez de dois ministérios, mais de dois, talvez quatro… para a ganância do PMDB, o céu é o limite.
A disputa esquenta
Dirá o presidente ao seu diário: “Eu ainda não tenho segurança sobre quem ganha as eleições no Senado. Embora eu leia nos jornais que eu estou apoiando o Antônio Carlos, na verdade o Sérgio Mottra e o Tasso Jereissati é que estão. É claro que eles falam comigo, mas não estou forçando a candidatura do Antônio Carlos porque acho que não cabe. Acho que ela não tem efeito positivo. Mesmo que eu quisesse forçar, imaginemos o contrário, colocando o Iris, isso não seria assim tão fácil. Com o voto secreto, há o risco enorme de o Antônio Carlos não ganhar as eleições, porque sempre haverá restrições a ele, por ele ser quem é e como é. O estilo só Antônio Carlos às vezes atropela os sentimentos dos senadores”.
FHC sempre tem palavras elegantes para desclassificar os que não contam com sua simpatia. O que ele quer dizer é que ACM é um bruto, um troglodita da política. O trecho seguinte do diário é um tanto contraditório. Passa a impressão que FHC apoia secretamente ACM. Não é bem assim. O “Nós” a que ele se refere é o PSDB. De fato, os tucanos fecharam com ACM, mas Fernando Henrique continua na moita.
Eis o trecho, lembrando sempre que mantivemos a mesma pontuação sincopada de FHC. Vol II, página 36 – 7 de janeiro – “O Luis Eduardo sabe que, por causa dele basicamente, nós temos um compromisso forte com a candidatura de seu pai, e por causa do PFL também. Mas que eu não posso permitir que essa questão deixe o Iris irritado. Porque o Iris tem sido um fiel cooperador, e sabe também o Luis Eduardo que o Sarney é o xis da questão, e o Sarney, isto eu não disse, mas penso, está jogando pelo Iris. O raciocínio é simples. Iris presidente, Sarney continua sendo uma espécie de ponte entre o governo federal com o Iris. Mesmo que desnecessária a ponte, ele saberá habilmente fazer com que o Iris crie algumas dificuldades para que ele possa, depois, negociá-las”.
No trecho subsequente, FHC já deixa de lado os eufemismos. Entre os joguinhos de poder que Sarney e Iris poderiam pôr em prática e as investidas taurinas de ACM, a primeira alternativa parecia melhor. Aí vai FHC: “Antônio Carlos presidente, ninguém vai ser intermediário de ninguém, ele sozinho na cena e eu tendo que torreá-lo. Eu até disse isso ao Luis Eduardo, mas sem a expressão “torreá-lo”, mas que eu sabia que a relação seria direta e com as dificuldades que são contíguas. Mas isso não me preocupa, maiormente. O Luis também sabe dessas coisas”.
A bronca do presidente
Em meados de janeiro de 97, o PMDB se prepara para sua convenção de renovação do diretório. Governadores, deputados e senadores são aliciados por Paes de Andrade para aprovar uma moção sobre a emenda constitucional da reeleição.
Pequena digressão sobre a emenda da reeleição: FHC dirá muitas vezes que, pessoalmente, não está muito interessado nela. É uma questão do partido. Às vezes se diz cansado, entediado, contando os dias para seu mandato terminar e poder voltar para a casa. Diz que ser presidente é prestar um serviço à Nação, por isso topa ser reeleito. A emenda constitucional da reeleição vai ser aprovada, mas com certa dificuldade. Ainda hoje se fala em compra de votos. FHC jura que isto não existiu.
O PMDB, sabendo-se fiel da balança no Congresso, vê no episódio uma oportunidade de se locupletar politicamente. Quer vender caro o seu apoio. Mas um partido fisiológico e sem unidade ideológica e política, onde sempre haverá alguém furando greve para tirar proveito pessoal, acaba desnaturando a força que tem. No episódio da emenda da reeleição, o PMDB foi buscar lã e voltou tosquiado.
Com força para obstruir o trâmite da emenda, o PMDB quer condicionar a votação da medida ao resultado das eleições para a mesa da Câmara e do Senado. O PSDB e o PFL repita-se, fecharam acordo com o PMDB para eleger Michel Temer presidente da Câmara. O PMDB iria forçar o mesmo acordo no Senado, com a eleição de Iris Rezende. A emenda da reeleição só voltaria a tramitar depois de eleita as novas mesas. Fernando Henrique liga para Sarney para dizer-lhe que isto é inadmissível. Considera o momento “um quadro de traição”. Depois ligou para outros peemedebistas, exortando-os a buscar uma solução.
Com a palavra, FHC: “Disseram-me que estavam buscando uma solução. Pedi ao Ronaldo Couto que influísse junto ao Iris, falei com o Sarney outra vez. Depois fiquei sabendo que não houve tentativa efetiva nenhuma, e na tentativa final o Jader não quis assinar o documento que contornaria a dificuldade”. (…) Ao próprio Iris eu disse: “Não é possível, senador; assim, vai atrapalhar até a sua eleição, porque me condiciona, e a bancada do PSDB, a esta afronta do PMDB. Busque uma solução”.
FHC redigiu de próprio punho um comunicado ao PMDB. O partido teria que decidir se era governo ou oposição. Se fosse governo, que o apoiasse. Se fosse oposição, que ficasse na oposição e entregava os cargos que tinha. FHC não aceitava ser coagido.
Foram três dias tensos. No PMDB, uns mordiam, outros sopravam. Alguns se diziam irritados com FHC. O presidente diz que ele é que estava irritado com o PMDB, um partido que ele chamou de “hamleteano”, sempre preso à dúvida não muito metafísica sobre ser governo ou ser oposição. Descobriu que a ideia de postergar a votação da emenda da reeleição partira de Temer. Já naquela época ele conspirava nas sombras.
FHC não esconde, também, certo desencanto com Antônio Carlos. De certo modo, tudo aquilo era culpa dele, da temerária insistência dele em ser candidato à presidência do Senado, onde a tradição dispunha caber a presidência da casa ao partido com maior bancada. O “direito natural” era do PMDB. Também demonstra irritação com Sérgio Motta, o porta-voz do governo que quase sempre era porta-voz de si mesmo. Suas opiniões pessoais passavam por ser as de FHC, que quase sempre discordava delas.
Desabafo de FHC: “Existe um grande empecilho que se chama Antônio Carlos. Não sei o grau de generosidade que o Antônio Carlos tem para sentir que o momento é delicadíssimo, para ele e para tudo que está em jogo, e que se continuarmos neste caminho vou ter que afastar o PMDB, vai tencionar a vida política nacional”.
FHC recebeu Jader Barbalho em palácio para uma conversa mais ou menos secreta. Não passou de análises de conjuntura. Luis Eduardo ficou possesso ao saber da visita de Jader, queixou a FHC por tê-lo recebido. No Piantella, tradicional restaurante de Brasília, onde os mais gabaritados cortesãos se reúnem para conversar fiado, os sismógrafos da imprensa captaram o cataclismo. FHC classificou o episódio todo como “política de botequim”. O PMDB, afinal, deu prosseguimento ao trâmite da emenda da reeleição. Nada como uma boa bronca para mostrar quem manda.
FHC conclui sua gravação examinando, em perspectiva histórica, o que é o PMDB. Sua conclusão é hegeliana; o PMDB é um tudo que é concomitantemente um nada. Seu ser é um eterno não ser retornando sobre si. Um partido alienado, que perdeu o bonde da história. O severo julgamento de FHC continua mais atual do que nunca. Mas o então presidente guardaria para seus botões esta desairosa apreciação. Bem ou mal, mais mal do que bem, o PMDB era, ainda é, peça essencial do jogo. Ruim com ele, pior sem ele. FHC encostou a faca bem perto do tênue fio que ligava o PMDB ao seu governo. Não quis cortar. Seria pior. Em 21 de janeiro, Iris manda recado a FHC: quer a neutralidade do presidente. “Ele a tem”, dirá FHC, que acha Iris e ACM “perdidos”.
Na sua ansiedade, Iris cometeu um erro estratégico. Foi a São Paulo, visitar Mário Covas e Franco Montoro. Depois foi ter com Quércia, líder do antitucanismo. Iris acendia velas a Deus e ao diabo. Foi um erro. O tucanos resoveram fechar de vez com ACM. No dia 5 de fevereiro, ACM foi eleito presidente do Senado com votos do PSDB, do PFL e da oposição. No dia seguinte, Iris visitou FHC, a quem admitiu ter sido um erro ir a São Paulo. Ouviu de FHC que, apesar de tudo, estava tudo bem. FHC aproveitou para informar a Iris que não iria retaliar o PMDB goiano pelo fato de seus representantes na comissão especial da reeleição não terem comparecido no dia da votação da emenda.
Em 5 de fevereiro, 1997, FHC recebeu visita de Sarney. Não sendo mais presidente do Senado, estava, contudo, disposto a ajudar o governo. Fez sugestões para ministérios. Falou de corrupção no DNER, atribuindo-a a Newton Cardoso, ex-governador de Minas Gerais. FHC contestou. “Quem se alega estar na chefia da malandragem não é ele, é o Wolney Siqueira, que eu nem conheço e, dizem, foi indicado pelo Iris Rezende”.
Dia 22 de fevereiro, FHC recebeu telefonema de Iris, prestando solidariedade ao presidente e informando que toda bancada goiana iria votar a favor da reeleição. Em 13 de maio, FHC recebe o presidetne da Câmara, Michel Temer, que sugere dois nomes do PMDB para o Ministério: Elizeu Padilha, “aquele rapaz do Rio Grande do Sul”, para os Transportes, e Iris, para a Justiça. FHC estranhou, pois tinha informações de que Temer e Iris estariam brigados. “O Iris cimenta boa parte do PMDB e eu tenho ótima relação pessoal com ele”, ditou o presidente ao seu diário. FHC falou a respeito com ACM. Nada contra. Encarregou-se de falar com Iris sobre o assunto.
Decidido que o PMDB entraria para o Ministério ( ACM concedeu o seu nihil obstat), veio a proposta de troca de lugares: Iris para os Transportes, Padilha para a Justiça. “Não pode”, decretou FHC. Assim se explicou ao seu diário: “É arriscado botar o Iris nos Transportes”. Segundo FHC, o “sistema estava a um passo da corrupção. “Pela primeira vez, tentam juntar governo com corrupção”. FHC nunca explicaria por que Iris nos Transportes era arriscado. Se um indicado de Iris, Wolney Siqueira, vinha fazendo das suas por lá, conforme notícias que chegavam ao presidente, imaginem os dois tomando conta do galinheiro!
“Não é possível, senador; assim, vai atrapalhar até a sua eleição, porque me condiciona, e à bancado do PSDB, a esta afronta do PMDB. Busque uma solução”“Antônio Carlos presidente, ninguém vai ser intermediário de ninguém, ele sozinho na cena e eu tendo que toreá-lo. Eu até disse isso ao Luis Eduardo, mas sem a expressão “toreá-lo”, mas que eu sabia que a relação seria direta e com as dificuldades que são contíguas. Mas isso não me preocupa maiormente. O Luis também sabe dessas coisas”