Fernando Krebs: voz das vítimas e do Estado há 31 anos
Redação DM
Publicado em 30 de julho de 2023 às 21:15 | Atualizado há 2 anos
Fernando Aurvalle Krebs tem sido por longos anos um dos promotores mais temidos de Goiás. O Estado teve vários fiscais da lei que colocaram acurácia na atividade de defesa dos órgãos públicos e do Estado brasileiro, caso dos inesquecíveis João Neder, Geraldo Batista de Siqueira, Isaac Benchimol, Demóstenes Torres, Sulivan Silvestre, etc. Inúmeros cumpriram a missão dada. Mas alguns permanecem no inconsciente coletivo por conta da forte presença na mídia e no imaginário coletivo.
Krebs é um dos mais relevantes destes personagens: enfrentou criminosos famosos, bandidos contumazes, delinquentes populares e políticos predadores da vida pública. Sofreu ameaças de morte. Acordou com poucas horas para fazer um Tribunal do Júri. E enfrentou perseguições na “imprensa marrom” e no próprio local de trabalho. Mas seguiu em frente.
Em entrevista ao DM, o promotor de Justiça diz que “não julga”. Prefere cumprir seu papel, que é reunir provas, formar convicção e realizar a melhor defesa possível do Estado.
Goste ou não do estilo dele, tem um perfil de herói público que representa rara camada dos operadores do Direito que [efetivamente] tenta equivaler Estado de Direito com Justiça. Na luta dos filósofos (dos antigos aos filósofos políticos) para encontrar palavras que definiam a Justiça, é de Trasímaco a que Krebs sempre evitou – a Justiça relativa que depende dos poderosos (dos interesses dos mais fortes) sempre foi enfrentada com a ideia de que é possível dar a cada um o que é seu. Por isso, fica – ao se analisar as lutas travadas pelo promotor – a ideia de que perseguiu: tal qual Sócrates, a Justiça é virtude e sabedoria frente à injustiça, que é violenta, má e ignorante.
Krebs é a síntese da história do Ministério Público, que une técnica e paixão pela busca desta Justiça que é certa aos olhos do público. A instituição Ministério Público erra, se equivoca, mas é inegável que acerta muito mais e orgulha o cidadão quando reage aos absurdos impostos pelos poderosos.
Nesta segunda-feira, 31, às 14h, no Colégio de Procuradores de Justiça do Estado de Goiás, o promotor torna-se procurador de Justiça do Estado de Goiás, dando novo passo em sua carreira, que começou ainda nos estudos de Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, no final da década de 1980. De lá para cá, muita coisa mudou. Mas o promotor diz que permanece convicto de que a democracia é o regime “menos pior” para o Brasil e de que o país não precisa de nova constituinte. Mas de mais fiscalização dos poderes.
Ao Diário da Manhã, Krebs relata suas pegadas intelectuais, que convergem para um direito social, cuja naturalidade é exatamente não se deixar seduzir para ser apenas “lei”, mas “ser Justiça”, como dito parágrafos atrás.
Após passar no concurso para promotor em Goiás, Krebs assumiu aqui o cargo por vocação, uma vez que pouco antes havia se apaixonado pela recente conformação dada à carreira durante a Constituição de 1988.
É justamente esta arrancada nos estudos, quando optou em ser promotor, que o fez assumir compromissos públicos de defesa do Estado no Tribunal do Júri e nas inúmeras investigações de suspeitas de improbidades administrativas e corrupções que ocorreram em Goiás.
Nas próximas linhas [ e na continuação da entrevista no site do Diário da Manhã] é possível compreender e entender o promotor, seus autores prediletos em áreas tão díspares como Direito Penal e Administrativo, Constitucional e Direitos Humanos.
DM – Como você teve ideia de ser promotor de Justiça?
Fernando Krebs – Tudo começou com um curso preparatório para o concurso do Ministério Público, na Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Tive interesse na defesa das forças coletivas e na cidadania. Para mim o Ministério Público é um dos grandes arquitetos da cidadania no Brasil. Cheguei a fazer concurso para promotor no Rio Grande do Sul, mas fui aprovado no concurso em Goiás. Tomei posse no início de 1992: 3 de fevereiro de1992 para ser mais exato. Meu primeiro dia de trabalho – por curiosidade – foi uma sessão no Tribunal do Júri onde o réu foi condenado. Comecei em Porangatu e Uruaçu e de lá eu fui para Rio Verde, onde fiquei, sendo depois removido para Anápolis, local em que fiquei seis meses numa promotoria de Interesses Coletivos, muito interessante, muito ampla, abrangente, defendendo patrimônio público, consumidor, meio ambiente. De lá, vim para o Tribunal do Júri, na Capital, onde atuei durante dez anos e meio. Depois, fui para o patrimônio público.
DM – Dos júris que fez, qual marcou mais sua atividade?
Fernando Krebs – O primeiro de ampla repercussão foi o caso de uma psicóloga que matou o marido, a Donata. Casos também com muita repercussão: Chico Buzina, que assassinou o então vice-prefeito de Anicuns. Aquilo teve ampla repercussão na época. Mas tiveram outros casos, que motivaram três ameaças de morte em razão da minha atuação. Realizei pelo menos mais de 500 júris, talvez número maior, né? Onde me entreguei… Tive muito compromisso. Por isso que os familiares das vítimas nos procurava. E nosso gabinete acabou se transformando num muro das lamentações. E muitas vezes a gente fazia o júri porque a família nos procurava, a gente mobilizava, organizava a família, que acabava nos ajudando na localização de testemunhas. Nos trazendo testemunhas importantes, provas e documentos…Conseguimos interagir bastante com os familiares de vítimas. Foi criada uma associação na época: a Associação Justiça Já!. Uma entidade não governamental de familiares vítimas de crimes. Nós mobilizávamos o júri, que – no tribunal – processa e julga os crimes dolosos contra a vida. Tribunal este que não fica devendo em nada ao juiz togado.
DM – Mas aquele de maior repercussão, que mais mexeu com a sociedade?
Fernando Krebs – Sem dúvida… o caso de mais repercussão foi do Chico Buzina, né? A mulher que matou, a Donata, teve também. E tivemos também um júri com mais três pessoas. Eram garageiros que vendiam veículos ali no setor Aeroporto, também teve grande repercussão na época.
DM – Sofreu ameaças de morte alguma vez?
Fernando Krebs – Durante o tempo que estive no Tribunal do Júri sofri três ameaças de morte, inclusive uma virou inquérito policial. Até foram presos os suspeitos. Depois não se confirmou a autoria destas tentativas de homicídio mediante paga de pistoleiro. Na época, se não me engano, R$ 80 mil [hoje seria assim R$ 1 milhão mais ou menos] teria sido estipulado pela minha morte. Quando fui para o Patrimônio Público não ocorreram ameaças de morte, ameaça, digamos, à integridade física. Mas através da imprensa marrom ocorreu perseguição. Nós sofremos o que anteriormente não ocorria, não era comum, não acontecia. Mas lamentavelmente também no final da nossa atuação nesta área ocorreram perseguições até mesmo em âmbito interno.
DM – A sociedade está descrente com as instituições. Principalmente as executoras da Justiça. O senhor sente isso?
Fernando Krebs – É notório e é fato que existe alguma descrença com instituições, com a democracia. Mas essa descrença só pode ser combatida com mais democracia das instituições, reformar a composição de tribunais na democracia, etc. Democracia é o menos ruim, com certeza. Não há nenhum regime autoritário melhor do que a pior democracia, que tem falhas, defeitos, limitações… O correto é fortalecer a cidadania e a fiscalização.
DM – É preciso mudar a conformação da Suprema Corte?
Fernando Krebs – Penso que sim, defendo que o Supremo Tribunal Federal pode seguir o exemplo de outras cortes constitucionais do mundo, especialmente da Europa, mas também dos Estados Unidos: ser uma corte constitucional apenas, sem competência originária. Quando você elimina a competição originária do Supremo, você acaba também com o foro por prerrogativa de função, chamado foro privilegiado, ok? Inclusive temos PEC neste sentido, uma emenda da Constituição. Entendo também que seguindo a semelhança de tribunais constitucionais da Europa nós deveríamos adotar os mandatos de nove anos. Para depois ampliar isso também para os tribunais superiores e tribunais de conta. Nestes tribunais de contas, nós teríamos tribunais mais técnicos e ao invés do governador escolher um terço, os egressos, auditor de contas e do Ministério Público de Contas, enfim, se nós fizéssemos o inverso [dois terços egressos de auditores membros do Ministério Público de Contas e apenas um terço egressos do mundo político], por assim dizer, se invertêssemos, bastaria para melhorar consideravelmente. Além de adotar também mandatos para os tribunais de contas.
DM – O julgador fica tempo demais no poder?
Fernando Krebs – Não gosto da ideia de um julgador ficar 25, 30 anos numa corte, seja ela qual for, seja uma corte judicial, uma corte de contas. Parece tempo demais. O direito muda, a sociedade muda. Precisamos renovar a composição das nossas cortes de um modo geral.
Perfil
– Natural de Porto Alegre (RS)
– 56 anos
– Promotor em Goiás desde 1992
– Cidades em que atuou: Petrolina de Goiás, Mara Rosa, Porangatu, Rio Verde, Anápolis, Goiânia
– Mestre em Direito: Universidade de Salamanca
DM – Como será quando assumir o cargo de procurador de Justiça?
Fernando Krebs – Será diferente. Terei menos independência e autonomia por razão muito simples: maior independência e autonomia dos membros do Ministério Público, também do judiciário, estão no primeiro grau, não no segundo grau, no órgão colegiado, a exemplo dos tribunais. Portanto, ao invés de posição individual, você tem que buscar consenso, construção do consenso. Ou seja, convencer seus pares, seus colegas, de suas ideias. Diria que é muito mais difícil e desafiador do que a atuação no primeiro grau. O que se pode esperar? Empenho, compromisso, profissionalismo, dedicação como de resto sempre tive ao longo de 31 anos e meio no Ministério Público, que me levaram por antiguidade a este cargo. E esta foi uma opção que nós tivemos agora porque há dez anos começamos a pedir promoção por merecimento. Cheguei à conclusão que deveria esgotar esta fase. E chegamos – acho que é uma chegada melhor, né? – na cúpula do Ministério Público, nesse órgão colegiado que é o Colégio dos Procuradores de Justiça, encarregado da administração da instituição e com a qual nós pretendemos contribuir modestamente com experiência, dedicação, empenho e trabalho.
DM – Ficará quanto tempo como procurador?
Fernando Krebs – Pretendo me aposentar daqui quatro anos e meio quando atingir os requisitos da aposentadoria voluntária.
DM – Que leis devem ser modificadas no país?
Fernando Krebs – Diria que a Lei de Execuções Penais. Já o foi, mas precisa ser vista ainda mais. Tornar as penas mais efetivas. A nova lei de improbidade administrativa, que simplesmente acabou com improbidade no país. A de foro, mais específica a de prerrogativa de função.
DM – Senhor perdeu muitas lutas?
Fernando Krebs – Ah… perdemos lutas em relação a algumas ações judiciais, improbidade administrativa de pessoas poderosas, né? Que foram até condenadas em primeiro grau, mas tiveram sua condenação revista no segundo grau. Nos causaram algumas frustrações, mas a nossa parte, garanto, nós fizemos, que é defender o interesse público. Importante é fazermos nossa parte e cumprirmos com nosso dever, nossa obrigação e ficarmos tranquilos. Nossa parte nós fizemos. Se os outros não fizeram a deles, é problema dos outros, não é problema nosso.
DM – O Brasil precisa de uma nova constituinte?
Fernando Krebs – Brasil não precisa de nova constituinte. Nós não tivemos ruptura histórica, política, econômica, social neste momento… A atual Constituição é produto de ruptura política, econômica e social. Ela correspondeu ao processo político econômico e social da época. O Brasil precisa, isto sim, de nova cultura de cumprimento das leis, nova cultura de respeito à coisa pública, do interesse público, de uma cultura republicana. O Brasil infelizmente não é republicano ainda. E precisamos de radicalizar a democracia, democratizar o país…
DM – Que autores do Direito mais influenciaram sua forma de pensar e agir?
Fernando Krebs – Francisco de Assis Toledo [N.R: nasceu em 1928 e morreu aos 72 anos em Brasília, em 2001. Foi ministro do STJ e membro do MPF], pra mim, um gênio do direito penal. Genial, pois consegue explicar a essência do Direito Penal, que é a tipicidade, culpabilidade. Faz isso em poucas palavras, de forma muito objetiva. Tem um livro clássico. É realmente bom, recomendo a leitura.
“Não viemos na vida a passeio, viemos para fazer a diferença e vamos continuar fazendo com compromisso, com responsabilidade”
Fernando Krebs
DM – Tem outros?
Fernando Krebs – Sempre gostei muito do Hélio Bicudo [ N.R: jurista nasceu em 1922 e faleceu em 2018. Foi integrante do Ministério Público de São Paulo, ministro da Fazenda de João Goulart, vice-prefeito de São Paulo e autor de livros referentes aos Direitos Humanos]. Hélio Bicudo é homem íntegro, honesto. Ele é exemplo do Ministério Público, muito corajoso, digno, muito honrado. Um humanista: homem progressista, democrata e homem com uma coerência inquebrantável, inquestionável.
DM – E no direito público, administrativo?
Fernando Krebs – Outro que me influenciou muito: Celso Antônio Bandeira de Melo [jurista que nasceu em 1936. É advogado e professor universitário, autor de vários clássicos do Direito Público]. Homem muito inteligente, grande administrativista. Jurista de escol. Deixa grande legado, grande obra. Um homem muito inteligente: escrita refinada, muito agradável, de leitura fácil e estimulante. Estes três juristas me influenciaram, estimularam a gostar do Direito, do Direito Administrativo e depois me levou para gostar da improbidade administrativa, do combate da corrupção.
DM – Mas quais livros?
Fernando Krebs – Dentre os livros, do Francisco de Assis Toledo, gosto de “Princípios básicos de Direito Penal”, editado pela Saraiva editora. Do professor Celso Antônio Bandeiras de Melo, “Elementos de Direito Administrativo”. Um livro muito importante também que me marcou e fez pensar o Judiciário, pensar a justiça brasileira…Chama-se “Democratização do Poder judiciário”, de Eugênio Raul Zaffaroni, grande jurista argentino, com outros autores.
DM – Fora do Direito existe algum livro que marcou o senhor?
Fernando Krebs – Vários: “Marxismo, filosofia profana”, de Adelmo Genro Filho; “Paraíso perdido”, de Frei Beto; “Lutando na Espanha”, George Orwell; de Mário Magalhães, um livro que li recentemente, “Marighella”, personagem ainda muito desconhecido na história do Brasil. Tem ainda “A vida de Olga Benário”, de Fernando Moraes, espetacular, fantástico. Escreve maravilhosamente bem. Ainda “Guerra Cultural e Retórica do Ódio”, João Castro Rocha, que mostra a divisão no Brasil, o discurso do ódio, a retórica do ódio, né? Esse Brasil bipolar… Escreve muitíssimo bem. Brilhante autor. “Berlim, 1961”, de Frederick Kempe. Excelente pra compreender a guerra fria soviética, Estados Unidos, um tema que me interessa muitíssimo. Livro espetacular. Existem vários outros para citar. E me estenderia demais ao fazê-lo.
DM – Rudolf Jhering diz que Direito é uma luta. Existem limites?
Fernando Krebs – É preciso lutar pelo Direito, sim, mas o limite é a legalidade do estado democrático. Este é o limite da luta pelo Direito. É aquela história: quando confrontar o Direito com a Justiça opte por esta última.
DM – Fora a vida pública, tem alguma diversão ou hobby?
Fernando Krebs – É bom que as pessoas tenham hobby. Também tenho o meu: andar a cavalo. Adoro cavalo. Adoro tomar vinho com os amigos. Além disso, amo, adoro viajar. Conhecer novos países, novas culturas, novas línguas. Amo ler livros de história. Gosto muitíssimo de história, conhecer história, geografia, cada vez mais e melhor.