Impunidade cibernética
Diário da Manhã
Publicado em 18 de agosto de 2016 às 01:57 | Atualizado há 9 anosProfessor-doutor afirma que a legislação brasileira sobre crimes cometidos na internet ainda é muito incipiente e que solução será legisladores ouvirem especialistas sobre medidas
O advogado Spencer Toth Sydow vê o Brasil como o reino dos hackers e que essa atuação se deve justamente pela dificuldade existente para punir crimes cibernéticos. Mestre e doutor pela Universidade de São Paulo e uma das maiores autoridades em assuntos relativos à aplicação da legislação na informática, ele diz que o País ainda está muito atrasado em relação a outras nações do mundo para monitorar e punir infrações praticadas no meio cibernético.
De passagem por Goiânia, onde proferirá palestra na manhã de hoje, na Faculdade de Direito, da Universidade Federal de Goiás, Spencer critica leis de momento como a que entrou em vigor logo após a divulgação de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann, porque não produzem qualquer efeito prático no mundo jurídico. O assunto relativo a crimes e internet é revestido de tanta novidade e dificuldade dos especialistas em acompanhar que até mesmo o meio acadêmico demonstra ainda patinar nas avaliações do tema. Em sua tese de doutorado, o professor Spencer lembra que nenhum dos examinadores fez qualquer questionamento a ele sobre internet, crimes cibernéticos ou legislação comparada do assunto.
A solução para dar maior celeridade à questão passa por uma sugestão que dificilmente os legisladores deverão acatar, por serem analfabetos em informática e crimes cibernéticos e por não delegarem a função de pensar a modernidade. “Os legisladores precisarão ouvir a comunidade acadêmica e científica sobre o que deve ser pensado para modernizar o Brasil e acompanhar os tratados internacionais que regulam o setor”, explica.
Em entrevista exclusiva, o professor-doutor falou sobre o Marco Civil da Internet, sobre o que acontece com as redes sociais no Brasil e no mundo e delineou um panorama para os próximos anos sobre as novas ações criminosas cometidas no ambiente cibernético.
Confira a Entrevista
Diário da Manhã – Como está o Brasil comparado a outros países em relação a investigações e punições a crimes cibernéticos?
Spencer Toth Sydow – O Brasil está muito atrasado, porque começou a produzir leis com eficácia criminal em 2013, muito atrasado em relação a outras nações tanto da América Latina como do resto do mundo. Só para termos uma ideia, os Estados Unidos começaram a produzir leis nesse sentido em 1986, a Europa tem uma Convenção desde 2001 e o Brasil tem uma média de 12 anos de atraso em relação a países mais evoluídos. Mesmo com relação à lei de 2013, chamada Lei Carolina Dieckmann, essa legislação tem uma eficácia bastante reduzida, praticamente inaplicável, principalmente pela forma com que foi concebida e aprovada. Foi feita somente para socorrer um caso pontual e não conseguiu coibir o crime, mesmo porque a legislação penal tem eficácia somente após sua entrada em vigor e não a fatos anteriores, ela não retroage. A atriz Carolina Dieckmann não foi beneficiada por essa lei. Se a tipificação penal para esse fato fosse da extorsão, que foi o caso, a pena seria bem maior. O Brasil também ainda é muito atrasado na questão da investigação de crimes cibernéticos primeiro por não termos uma legislação suficientemente abrangente e eficaz, o que faz com que a punição seja praticamente nula e os agentes públicos não são treinados adequadamente para lidar com isto. Some-se a isto o fato das universidades não ensinarem o direito penal aliado à informática em suas cadeiras de direito criminal, até o momento. Então o ambiente acadêmico é falho, a legislação é falha, o aparelho é falho e os profissionais envolvidos não têm formação suficiente.
Diário da Manhã – O que é possível fazer para mudar essa situação e dar maior celeridade a investigações e punições?
Spencer Toth Sydow – Acho que o primeiro passo seria que os legisladores chamassem especialistas na área para entender quais são os pontos que precisam ser modificados na legislação. Os legisladores hoje acreditam que apenas com base no conhecimento seu e de sua equipe de assessores consigam chegar a uma evolução legislativa que é absolutamente irreal. O desenvolvimento da legislação que eu citei agora é uma demonstração disso. A Lei Carolina Dieckmann é absolutamente inaplicável porque o legislador não foi atrás de descobrir quais são as reais necessidades do mercado. Então o primeiro passo é o legislador chamar a academia, composta dos estudiosos do assunto para explicar onde estão as verdadeiras necessidades desse fato. O segundo ponto importante é a capacitação de peritos e profissionais da polícia, do Ministério Público e do Judiciário para que eles também compreendam qual é a nova realidade que estão inseridos e qual a situação que ocorre para que então possam agir de forma mais positiva e produtiva para iniciar a produção. É preciso que existam profissionais que entendam do assunto e não profissionais que se intitulam.
Diário da Manhã – Como o senhor classifica o Marco Civil da Internet?
Spencer Toth Sydow – Esse Marco Civil da Internet é fundamental, porque ele parte do pressuposto de definições que não existiam. Para que exista uma legislação de informática foi necessário que se criasse algumas definições como o que é um usuário, um provedor de serviços, provedor de conteúdo, um endereço de IP (internet protocol), um terminal e o Marco Civil faz isso muito bem. Evidente que o objetivo não era esgotar o assunto, mas sim, ser uma primeira legislação que traga para o ambiente um início de discussão. Então, ele é muito deficiente em muitas coisas, como por exemplo na questão civil como bloqueio de aplicativos, de provedores, de guarda dos dados que ainda ficou meio nebulosa e ainda há necessidade de regulamentação para assuntos fundamentais como o direito de esquecimento, circunstância de punição administrativa dos provedores que violam princípios constitucionais e outros aspectos que precisam ser regulamentados. Isso não significa que o Marco é ruim, muito pelo contrário, significa que ele inicia um debate que deveria ter sido o primeiro normativo sobre o assunto. Hoje temos o direito penal começando o assunto sobre o direito informativo e o direito civil vindo na sequência, quando na verdade deveria acontecer justamente o oposto.
Diário da Manhã – O que significam novas tecnologias e aplicativos como o WhatsApp e sua aplicação na vida prática das pessoas?
Spencer Toth Sydow – Para mim a lógica dos aplicativos como comunicadores instantâneos é uma lógica comunicativa fundamental e um direito fundamental. Os problemas que surgem a partir deles são problemas naturais de todo novo instrumento que surge. Eu não posso culpar uma faca por ter matado uma pessoa, mas uma pessoa que usou a faca. Do mesmo modo não posso culpar o WhatsApp pelo uso dessa tecnologia por parte de um delinquente. Os novos aplicativos são extremamente importantes para a sociedade. Nós vivemos uma circunstância e um momento em que a limitação de uma informação é praticamente impossível, possibilidade de comunicação se tornou quase impossível de ser controlada. Além disso a tecnologia é muito mais rápida que o direito e muito mais inteligente, quando o direito cria uma legislação a tecnologia vem e contorna isso em poucas horas fugindo de seu alcance. O direito não é páreo para a tecnologia. Qualquer que seja a tentativa do direito para frear a tecnologia as possibilidades para fugir disso são maiores. Vamos bloquear o WhatsApp, então vamos para outro aplicativo como o Telegram ou outros aplicativos que servem para a mesma função.
Diário da Manhã – O Brasil ainda é um dos principais celeiros de hackers do mundo?
Spencer Toth Sydow – O Brasil ainda é um dos reinos dos hackers no mundo, aqui ainda têm muito mais hackers do que o resto do mundo. Um indivíduo desses que cometa uma grave infração penal poderá receber uma pena de um ano, o que é irrisório e a impunidade induz à continuidade dos crimes. Temos um Código Penal da década de 1940 que não previa nada disso. Em 1984 foi refeita a Parte Geral quando ainda não existia internet, que não leva em conta o potencial multiplicador. Então, é preciso reformar isto urgentemente porque essa impunidade leva à prática de mais crimes.