Política

O fim da presunção de inocência

Redação DM

Publicado em 4 de outubro de 2016 às 01:57 | Atualizado há 5 meses

  • De um lado falam os que querem combater a criminalidade impondo penas efetivas, e de outro os que dizem que se trata de medida inconstitucional por violar a presunção de inocência

O Supremo Tribunal Federal voltará esta semana a discutir um tema de extrema importância e que se reveste de amplo significado pela polêmica e pelo alcance. Continuando o julgamento de um habeas corpus, a Suprema Corte retomará o debate sobre o cumprimento provisório de sentenças penais condenatórias. A questão é controversa e divide opiniões em todos segmentos de operadores do Direito, já avançando para a sociedade civil, principalmente para as áreas de defesa dos direitos humanos.

A matéria já estava hibernando há alguns anos no STF desde que o ministro Eros Grau (já aposentado) resolveu acender a discussão em 2009 sustentando uma argumentação de somente após a sentença condenatória ser confirmada com trânsito em julgado a pena poderia ser executada. Mas a chama virou incêndio quando em fevereiro desse ano o Pleno do STF julgou que uma condenação em segundo grau de jurisdição (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) pode ser executada imediatamente, sem necessidade de aguardar-se o exame de recursos ao Superior Tribunal de Justiça e ao STF.

Para compreender melhor o caso é preciso buscar na memória da complicada legislação brasileira. O Código de Processo Penal de 1940 estabelecia que réus poderiam iniciar o cumprimento da pena logo após a condenação, exceto em casos de crimes afiançáveis, como lesão corporal leve. O juiz ao condenar o indivíduo já mandava lavrar o mandado de prisão e colocava o apenado nas grades, com os rigores da lei.

Mas, como no Brasil as leis são a rigor feitas em momentos pontuais e obedecem a interesses geralmente de poderosos, veio o tempo negro da ditadura militar instalada em 1964 e com ele as torturas, perseguições, arbitrariedades e assassinatos. Um dos mais repudiados e sanguinários torturadores e assassinos do regime militar em São Paulo era o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que ainda na sentença de pronúncia teve decretada sua prisão. Os meganhas de plantão precisaram editar uma lei sob medida dizendo que o indigitado acoimado criminoso que tivesse residência, ocupação lícita e bons antecedentes poderia responder ao processo em liberdade.

Veio a redemocratização, com a sociedade colocando os milicos de volta nos quartéis e uma nova Constituição Federal incorporou esse princípio que garante que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Pronto, estava criada a senda para a impunidade, garantem alguns. O argumento é que qualquer cidadão pode ser considerado em primeira instância, recorrer para o Tribunal de Justiça ou para o Tribunal Regional Federal [em se tratando de Justiça Federal], em seguida cabe recurso para o Superior Tribunal de Justiça e por fim para o Supremo Tribunal Federal, antes de ter seu nome jogado no “rol dos culpados” e ser colocado a ferros para cumprir a pena e pagar sua dívida para com a sociedade.

Impunidade

Alguns juristas sustentam a argumentação de que não viola o princípio da inocência presumida mandar quem tenha sido condenado por algum crime cumprir a pena, porque, segundo eles após a sentença condenatória ser confirmada em segundo grau não mais se discutirá prova, apenas matéria de direito ou simplesmente recursos.

Os mecanismos para protelar a execução pena podem ser quase infinitos, dependendo da capacidade do apenado poder pagar um bom advogado ou não. Um mero recurso, uma petição avulsa, um pedido de perícia ou qualquer outra medida procastinatória pode significar meses de atraso no julgamento e se somados se tornam anos e não raro entram nas casas de 10, 15 e até 20 anos de protelação e zombaria da Justiça. Assim, somente pobre tem o trânsito em julgado antecipado e vai para a cadeia mais rápido.

Contramão

A juíza Placidina Pires, titular da 10ª Vara Criminal de Goiânia assiste todos os dias um desfile de criminosos que assaltam, roubam com arma e violência, estupram, espancam, violentam suas vítimas e saem de cabeça erguida com sorriso nos rostos porque sabem que dificilmente ficarão na cadeia. Ela é incisiva quanto à execução provisória da pena quando a sentença é mantida pelo segundo grau de jurisdição.

“Todos os países desenvolvidos com histórico de respeito aos direitos e garantias da pessoa humana, como a Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina, não aguardam o trânsito em julgado para que o condenado inicie o cumprimento da pena.

Não há razão para se aguardar que o processo passe por quatro instâncias para que se tenha uma certeza quanto ao acerto do julgamento para iniciar a execução da pena”, pondera a magistrada.

Ela ainda lembra que somente réus com poder aquisitivo percorrem todas as instâncias recursais e isso acontece na maioria das vezes “visando a procrastinação e a impunidade, com o transcurso do prazo de prescrição” e classifica como “excelente” a decisão do STF em autorizar o cumprimento antecipado. Ela mesma já tem aplicado esse princípio norteador ditado pelo STF e mandado condenados para a prisão antes de transitar em julgado seus recursos.

Injustiça

O advogado criminalista Vandelino Cardoso classifica como “equivocada” a medida tomada pelos ministros do STF e que ela viola o princípio da presunção de inocência. “Está muito claro na Carta Magna que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado. Não há discussão sobre esse preceito constitucional”, orienta ele.  Para Vandelino enquanto não esgotar todas as possibilidades de recurso de defesa o indivíduo não será considerado culpado e que isto serve de garantia para todos e visa evitar injustiças como em casos de erro judiciário.

O presidente do Conselho Seccional em Goiás da Ordem dos Advogados do Brasil, Lúcio Flávio, é incisivo quanto ao que manda a Constituição e ele lembra que se tornou questão de mérito para a OAB nacional combater essa execução provisória da pena. “Todo o sistema da OAB nacional fechou questão quanto ao fato de ser medida inconstitucional essa possibilidade de execução provisória das penas e isso viola garantia expressa no texto constitucional. Somos contra e esperamos que o STF reveja isto”, finaliza.

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