“Oligarquia pró-EUA deu xeque-mate na esquerda latino-americana”
Redação DM
Publicado em 17 de fevereiro de 2018 às 01:39 | Atualizado há 8 meses
- Historiador diz que existe identidade entre as quedas de Manuel Zelaya, Honduras; Fernando Lugo, Paraguai; e Dilma Rousseff
- Pesquisador do Iesa, da UFG, afirma que deposição das armas pelas Farc, na Colômbia, constitui uma estratégia correta
- Escritor frisa que Raúl Castro será substituído por Miguel Díaz Canel, em Cuba, com acordo com EUA e intermediação do papa Francisco
- Intelectual gauche crê que ameaça dos EUA de deflagrar um golpe civil e militar na Venezuela seria um ‘déjà vu’
A América Latina enfrenta, hoje, uma grave crise com um retrocesso na retirada de direitos econômicos, sociais, culturais, com o suporte dos EUA [Estados Unidos] e das oligarquias locais, afirma, com exclusividade, o doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás [UFG], historiador Romualdo Pessoa Campos Filho. De linhagem marxista, o pesquisador aponta que existem, sim, identidades entre as quedas de Manuel Zelaya, 2009, em Honduras; Fernando Lugo, 2012, no Paraguai; e Dilma Rousseff, 2016, no Brasil. Com a ascensão meteórica de Michel Temer [MDB-SP] ao Palácio do Planalto. Para a adoção de medidas ultraliberais que afagam o mercado. O escritor gauche acredita que Raúl Castro, herdeiro da revolução de 1959, deixará o poder, em Cuba, em 2018. Ele defende a celebração do acordo entre as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] e o Estado. Mais: explica as razões para a derrocada de Cristina Kirchner, na Argentina.
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Diário da Manhã – A América Latina sofre, hoje, o esgotamento de um ciclo progressista?
Romualdo Pessoa – Não diria “esgotamento”, mas as políticas progressistas, mesmo que limitadas e ainda padecendo de defeitos neoliberais, colocaram em xeque o velho poder tradicional. De uma oligarquia acostumada a dominar com o apoio dos EUA. Isso durou o tempo em que as ações das políticas externas estadunidenses estavam absorvidas em intensas guerras no Oriente Médio e na tentativa do isolamento da Rússia. Quando se percebeu que os países latino-americanos estavam seguindo por uma rota diferente, e por meio da liderança brasileira, construindo uma alternativa na geopolítica mundial de deslocamento do poder estratégico, inclusive reforçando o poderio comercial pelo pacífico em direção à China, e incluindo a própria Rússia, as ações se voltaram para destruir os governos daqueles países que têm maior importância nessas relações políticas. As crises foram geradas por meio de ações políticas e infiltrações de agentes em manifestações, ao mesmo tempo em que a mídia tradicional unificava seu discurso com o objetivo de desconstruir as mudanças que estavam em andamento. Como muitos desses governos administraram crises de Estado, e por ter que lidar com congressos parlamentares de maioria conservadora, terminaram por manter vícios na administração e na política. Foi por esse caminho, tradicionalmente trilhado por eles, que os conservadores deram um xeque mate na esquerda. O moralismo hipócrita, o discurso conservador religioso e a manipulação da mídia terminaram por apagar a euforia que existia em relação à esquerda. Isso não significa esgotamento, mas uma nova etapa de um processo político que encontra sempre adversidades. O momento é de retrocesso.
DM – Existem identidades entre as quedas de Manuel Zelaya, 2009, Honduras; Fernando Lugo, 2012, Paraguai; Dilma Rousseff, 2016, Brasil?
Romualdo – Sim, claro. Não há dúvida. Nem coincidências. A derrubada desses governos, bem como o desgaste imposto aos Kirchners na Argentina, fez parte de uma estratégia conservadora numa ação política para retomar o controle do poder na América Latina e botar nos governos desses países fantoches, elementos ligados aos interesses dos EUA.
As Farc seriam dizimadas na Colômbia
Romualdo Pessoa, doutor da UFG
DM – O que explica a derrota do Kirchenerismo, após 13 anos de hegemonia, na Argentina?
Romualdo – Praticamente as mesmas razões que levaram ao definhamento do PT aqui no Brasil. Uma reação orquestrada que passou inicialmente por uma forte campanha de desmoralização dessas forças políticas, e da esquerda em geral, por meio da intensificação na grande mídia de notícias negativas e de contrainformações com o objetivo de gerar fortes desgastes. Mais do que simples desgastes, as ações, coordenadas pela mídia, mas contando com o apoio de ONGs, órgãos do próprio Estado dominado por ideias e práticas conservadoras, e intensificada por um setor poderoso do judiciário quando viram que seus interesses corporativos estavam sendo ameaçados no governo Dilma. Na Argentina, o embate foi ainda mais prolongado, porque ainda houve uma sobrevida da Cristina Kirchner, que conseguiu suportar até locaute e intensas greves patrocinadas pelos setores “produtivos”, ou melhor dizendo, por aqueles que controlam os meios de produção.
Ameaça de golpe na Venezuela é déjà vu
Romualdo Pessoa, doutor da UFG
DM – A deposição das armas pelas Farc constituem uma estratégia correta?
Romualdo – A meu ver sim. Eles seriam dizimados diante de um quadro que lhes era absolutamente adverso. Principalmente com a crise que se intensificou na Venezuela e com todo o poderio bélico que foi investido pelos EUA na Colômbia. Na verdade, essa guerra servia aos interesses estratégicos estadunidenses, porque através da política de combate ao tráfico de drogas, e da vinculação que foi dada dessa atividade com a guerrilha, as ações militares cumpriam outros objetivos, de através da Colômbia as ações de inteligência no combate às drogas servissem para desestabilizar os governos de esquerda.
DM – Os EUA recomendam um golpe de Estado civil e militar, hoje, na Venezuela. Para depor Nicolás Maduro. Como analista da geopolítica mundial do século 21, o que o senhor tem a dizer?
Romualdo – Isso é um “deja vu”. Os EUA sempre agiram assim na relação com os países da América Latina cujos governos lhes eram e são hostis. É uma política imperialista, de envolvimento direto nos destinos de outras nações, ferindo frontalmente a autodeterminação de cada povo e de cada país. Essa é uma história cujas origens podem ser encontradas no século XIX. Pelo “Destino Manifesto”, de viés protestante-puritano, aquele país se designou como sendo o eleito por Deus para dominar as Américas, daí a célebre e malfadada frase: “A América para os americanos”. E, pouco depois, a política do “Big Stick” [o grande porrete], inserido na Doutrina Monroe, que tratava na ponta do porrete aqueles países que ousassem sair da “linha” e contrariassem os interesses estadunidenses. O que ocorre com a Venezuela já aconteceu com Cuba, com o Brasil, com o Panamá, com a Bolívia e com todos os países cujos governos adotassem uma política de alianças com inimigos estratégicos dos EUA. A guerra fria acabou, mas não essa forma dos EUA lidar com seus desafetos. Muito pelo contrário.
DM – Raúl Castro deixa mesmo o poder, no mês de abril, em Cuba, para Miguel Díaz-Canel?
Romualdo – Acredito que sim, e acho que isso fez parte do acordo com os EUA durante o governo Obama, com a intermediação do Papa Francisco. Até mesmo pelo fato dele já estar bastante velho. Agora tudo depende da maneira como se dará a relação com os EUA. Com Donald Trump, muito do que foi acordado entre os dois países está sendo desfeito. A política externa de Trump é isolacionista e sua base de apoio é muito forte entre os anticastristas que vivem naquele país. É possível que a saída dele sirva como um trunfo nas negociações para que o bloqueio criminoso de cinco décadas seja extinto. Mas é preciso ainda ver como as coisas andarão nos EUA sob a batuta desafinada de Donald Trump.
Tendência é a de Lula ser preso e impedido de disputar 2018”
Romualdo Pessoa, doutor da UFG
DM – Luiz Inácio Lula da Silva será preso e impedido de disputar as eleições de 2018?
Romualdo – Desde o começo dessa crise em que ficou bem claro a seletividade nas investigações de casos de corrupção que tenho dito que o objetivo é pegar o Lula. Quando falo em seletividade não me refiro somente a investigações aos que são do PT, mas aos que fizeram parte da base de apoio dos governos Lula e Dilma. Porque tudo que se está descobrindo agora, era prática corriqueira de décadas de política brasileira. As eleições aqui no Brasil sempre ocorreram contaminadas nessas relações entre empresas e financiamento de campanha. Foi assim que as oligarquias permaneceram no poder tanto tempo. O que ocorreu nos governos anteriores, inclusive do PSDB, com FHC, com uso do mecanismo de compra de parlamentares para aprovar a reeleição. Ora, se o objetivo desde o começo é prender Lula, para que ele não retorne à presidência da República, e se por mais de dois anos repetidamente se acentua o desgaste numa lógica goelbesiana [uma mentira repetida por muitas vezes se passa por verdade], é evidente que isso deverá ocorrer. Pode não ocorrer caso o STF volte atrás na decisão de prender um investigado quando já houver uma condenação numa segunda instância judicial. Se isso não ocorrer, Lula será preso. A menos que houvesse uma convulsão social e ações de desobediências civis coletivas. Não me parece que vai acontecer, porque o povo está anestesiado e muito cético em relação à política. Houve uma desconstrução perversa do que aconteceu de melhor no Brasil nos últimos anos e o pessimismo foi injetado no inconsciente da população. Pessimismo, aversão à política e intolerância com as diferenças. Nesse ambiente a sociedade está mais para a letargia do que para se levantar contra injustiças que se cometam contra um político que é tido, e isso é inegável, como a maior liderança política do país desde Getúlio Vargas. É claro que isso tem um tempo de validade, a desesperança leva ao desespero, e às insurgências sociais, basta pesquisar na história.