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Para negociador da Lava-Jato, MP 703 ‘favoreceu interesses poderosos’

SÃO PAULO — O procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, principal negociador da força tarefa da Operação Lava-Jato, criticou, em entrevista ao GLOBO, a edição da Medida Provisória 703, que alterou as regras dos acordos de leniência na lei de combate à corrupção. Para Lima, a mensagem que fica é que "quando interesses poderosos estão em jogo, o Governo Federal fará as alterações necessárias para salvar empresas". Para ele, o argumento de que um possível fechamento das empresas acusadas de corrupção na Lava-Jato geraria desemprego nada mais é do que "uma política de propagação do medo". Ele diz que a MP tem dois objetivos: salvar a fonte de recursos de um projeto de poder hegemônico e impedir que a força tarefa da Lava-Jato continue a aprofundar as investigações. O negociador da Lava-Jato disse ainda que é necessário derrubar a MP 703 para "não caminhar para trás" no combate à corrupção.

A MP 703, que alterou a redação da lei anticorrupção, afeta o combate à corrupção?

A resposta está na própria pressa do governo federal em alterar a lei anticorrupção. O Ministério Público estava analisando propostas de lei em tramitação no Congresso, auxiliando o aperfeiçoamento da legislação. Entretanto, de repente, vem o governo e altera a legislação mediante medida provisória. E qual a urgência? Simples! Era necessário que o governo revogasse o inciso I, do §1º, do art. 16, da Lei 12.846/2013, que era o principal argumento usado pela força tarefa da Lava-Jato contra as seguidas tentativas do governo federal em fazer o chamado ‘acordão’. Esse inciso exigia que fosse realizado acordo apenas com a primeira das empresas envolvidas. E não com todas, observe-se. As demais, salvo se apresentassem novo crime de corrupção, seriam simplesmente punidas. Mas agora a CGU pode voltar a dar andamento nos seus procedimentos, paralisados pelo risco de ser obrigada a punir as empresas com a inidoneidade, pois pode celebrar acordos de leniência por atacado, sem que as empresas sejam obrigadas a apresentar crimes de corrupção novos. O governo federal, assim, desmontou uma estratégia de eficácia comprovada, que é o incentivo à quebra da unidade entre as empresas no propósito de ocultar os fatos das autoridades — , como é chamada pela máfia italiana —, permitindo que haja um acordo global, sem maiores repercussões na real investigação dos fatos. O que veremos agora é uma série de acordos, sem qualquer relevância para a revelação de crimes de corrupção de agentes políticos.

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Fica uma sensação de tolerância com a corrupção? O poder público está normativamente autorizado a tolerar determinados ilícitos?

Já não bastasse a estranha pressa, há argumentos fortes contra a edição dessa medida provisória. Primeiro, realmente é a mensagem que passa. A primeira e histórica oportunidade do governo brasileiro em demonstrar sua real seriedade com o combate à corrupção acaba em uma vexatória capitulação aos interesses dos acionistas das empreiteiras. A mensagem que fica é a de que, se necessário, quando interesses poderosos estão em jogo, o governo federal fará as alterações necessárias para salvar empresas, ou quem mais a coalização de partidos entender importantes para a manutenção do “status quo”.

Num segundo argumento, há o completo absurdo, repetido inclusive pela presidente da República, de se afirmar não caber a punição da empresa, mas sim apenas de seus dirigentes. Cabe sim a punição da empresa, dos seus dirigentes corruptores e de todos os envolvidos na corrupção, inclusive partidos políticos. A empresa deve enfrentar o procedimento, ter todo o direito de defesa, e, ao final, se houver a convicção do malfeito, deve ser punida com rigor. A ameaça do desemprego, do fechamento de empresas, etc., nada mais é que uma política de propagação do medo com dois principais objetivos: o de salvar a fonte de recursos de um projeto de poder hegemônico, e o de impedir que a força tarefa da Lava-Jato continue a utilizar o acordo de leniência para aprofundar as investigações.

Ninguém está normativamente autorizado a aceitar a corrupção. O combate das práticas corruptas envolve nenhuma tolerância e o máximo de punições exemplares. Não se tratando de crimes cometidos por pessoas em situação de precariedade econômica e social, por qual motivo ser tolerante com esse crime?

A medida limita a atuação dos órgãos de investigação? O que senhor acha da redação que não obriga a participação de instituições como o MPF para a celebração do acordo?

Qual é a única instituição capaz de saber a real extensão da responsabilidade criminal e cível de uma empresa investigada? O único órgão capacitado para tanto é o Ministério Público. Ele dialoga com a Receita, com a Polícia, com a vítima, com a CGU, etc., bem como tem acesso a dados sigilosos que somente com o tempo poderão ser revelados. Como a CGU, ou pior, a AGU, pode ter uma suficiente visão de todo processo? O Ministério Público deve ser parte obrigatória do processo, exigindo que o interesse público no acordo seja cumprido. E o interesse público não se limita, como querem fazer crer, apenas no ressarcimento da vítima. O interesse público está também em ter uma investigação profunda e a punição de todos os envolvidos, sejam as empresas, sejam seus dirigentes ou acionistas. Somente assim teremos uma lei que iniba comportamentos de corrupção futuros, que exerça uma das mais importantes funções de leis punitivas, que é a de prevenção geral. E o que a AGU está fazendo no processo? Qual o interesse que ela vem defender? Infelizmente o que se vê é a diminuição do papel da CGU e a assunção pela AGU da função de advocacia dos interesses políticos do Governo.

Se a MP já estivesse em vigor no início da Lava-Jato, em que pé as investigações estariam?

Se a medida provisória já estivesse em vigor, não teríamos alcançado tantos acordos de colaboração e acordos de leniência como já realizados. Teríamos menos pessoas presas, menos criminosos condenados, menos provas com que trabalhar. E o motivo de tudo isso é simples. A corrupção é um crime econômico e os seus agentes envolvidos sabem muito bem avaliar o custo de seu comportamento. Assim, se o Governo manda o recado que virá salvar a todos por um pequeno e módico preço — pois nunca a Petrobras será completamente ressarcida de tudo que perdeu, seja por dano material ou à sua imagem, quem precisará vir ao Ministério Público para fazer acordo? Ninguém se engane, pois todos os acordos são movidos por interesses particulares dos colaboradores e uma análise do risco de virem a ser punidos em definitivo. Se não houver esse risco, qual o motivo para confessar?

O que mudou com a MP 703 que pode afetar investigações em curso com a Lava-Jato?

A força tarefa da Lava-Jato já avançou bastante, e novas provas não param de aparecer. Já há mais de um ano lutamos para impedir o acordão e assim continuaremos. Vamos lutar para aprofundar a investigação, tanto verticalmente, sobre as estruturas que realmente são responsáveis pela corrupção sistêmica que se instalou, mas também horizontalmente, sempre na ideia de mostrar para a população que a corrupção, hoje, permeia significativos setores da atividade governamental.

Além disso, é necessário trabalhar na conscientização da população pela rejeição dessa medida provisória pelo Congresso, com a alteração, mediante profunda e democrática discussão, positiva de nossa legislação. Precisamos caminhar muito, não para trás, mas para frente, trazendo os melhores exemplos internacionais de combate à corrupção, como, aliás, já o faz a campanha das “10 medidas contra a corrupção” do Ministério Público. Além disso, na minha opinião, temos que diminuir ao máximo as hipóteses constitucionais de foro privilegiado e criminalizar o comportamento da pessoa jurídica. Só assim teremos eficácia nesse combate.

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