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O bad boy dos pincéis

Fosse um guitarrista de blues e rock ´n´ roll, o artista visual Michelangelo Merisi de Caravaggio talvez andasse com um cigarro no canto da boca, desse declarações bombásticas que alimentariam a imprensa especializada por semanas e mandasse ver canções que entrariam à história. Seria, em bom português, um mestre, e daqueles que escutamos o rufar das vibrações impulsionadas pela existência humana ao estilo de uma nota tocada ou um pincel revoltado que pula para a tela atrás da vida eterna.

Mas Caravaggio não foi nada disso. Ou melhor, não um trovador que vai de lugar em lugar com seu instrumento na bagagem. Bad boy, ah, ele isso era! Barroco, dono de traços soturnos, com cores escuras e forte realismo para os padrões do século 16, a própria morte do artista ajuda a elucidar um pouco o tipo de vida que levara: morreu jovem, aos 38 anos, ao que tudo indica de uma infecção provocada por ferimento de espada numa briga. Mesmo abandonando os pincéis muito cedo, está entre os grandes.

Boêmio de carteirinha e sujeito com vocação para se meter em encrenca, Caravaggio possui em sua biografia a acusação de ter dado cabo da vida de um homem. Os trejeitos mundanos, porém, não lhe impediram de cair no berço esplendido da Igreja Católica, ao se utilizar dos traços dramáticos, teatrais e sombrios dele como um arma contra o protestantismo durante a Contrarreforma, além de ser inegável que o artista viveu assim como criou: com intensidade, turbulência, crueldade e escuridão.

Intensidade, turbulência, crueldade e escuridão, aliás, que podem ser vistas numa de suas obras mais famosas, a tela “A Decapitação de São João Batista”, de 1608. Seus personagens eram pincelados por uma luz típica da técnica que hoje se conhece pelo nome de “claro-escuro” e tinham uma caracterização precisa de vestimentas e objetos, como em “Flagelação de Cristo “Cristo na Coluna”, pintura de 1607, onde há Cristo com as mãos amarradas e dois homens lhe prendendo e lhe tirando a liberdade.

Para entender por que essas peculiaridades marcaram a arte de Caravaggio, é preciso retornar a infância do pintor, quando ele tinha apenas seis e 18 anos. As datas marcaram a perda do pai e mãe. Anos antes, o jovem foi aluno do estúdio do pintor milanês Simone Peterzano. Após o falecimento da mãe, herdou parte da propriedade da família e, com a grana levantada pela venda dos imóveis, partiu para Roma, numa época em que a Contrarreforma estimulava a construção de novos templos.

Foi nessa época também que chegara a conviver com artistas e arquitetos que vinham de toda a Itália. Na miséria, fez pinturas para vender nas ruas, passando a trabalhar para o Cardel Del Monte, clérigo endinheirado e patrono de uma escola de pintores de Roma, a Academia de São Lucas. Tendo um lugar para morar no palácio do Cardeal e uma pensão regular, Caravaggio começou a criar telas de homens com traços femininos, já que Del Monte, na surdina, gosta de jovens desse tipo de coisa – safado!

CONTEXTO

É importante contextualizar que a arte no século 16 estava em crise, após o Renascimento, com nomes como Rafael, Michelangelo e Leonardo Da Vinci. A crise é denominada pelos historiadores da arte de maneirismo, já que a ideia de sofisticação erudita, algo do qual apenas a aristocracia conseguia provar, era associada a esquitices e anatomias, como na pintura “O Homem de Triunvirato” (1490), de Da Vinci.

Lá pelos idos de 1600, portanto início do século 17, as coisas começaram a ganhar outra cara. Miguel de Cervantes, autor daquela obra considerada a inauguradora do língua espanhola moderna, mostra – em “Dom Quixote” – que os moinhos poderiam ser gigantes. Nessa época, William Shakespeare fez do teatro uma arte do drama humano. E Caravaggio, segurando seus pincéis e brigando pela noite, seguia a mesma toada.

Meio sem querer, ele apresentou novas possibilidades artísticas para a sociedade. Foi um sucesso imediato, mas não sem antes gerar certo incomodo: viam seu traço como a representação daquilo que é citado na abertura dessa matéria, a escuridão. Só que essa arte, taxada num primeiro momento como maluca, mexeu com a percepção estética de uma turma da pesada, como Ribera, Velázquez e Rembrant. E, bem, o resto é história.

De Roma, voltando à vida de Michelangelo Merisi de Caravaggio, saiu vazado por conta de uma briga. Então tem início uma série de quadros com temáticas religiosas, a maioria feitos para decorar capelas que nasciam aos montes. Apostador, ao se recusar a pagar uma, se viu com um desafeto e lhe matou: Rannuccio Tommasoni não resistiu aos ferimentos. Nesse período, perambulou por Nápoles, Malta, Siracusa, Messina e Palermo, quase sempre indo de um lugar para o outro para fugir das desavenças.

Caravaggio morreu a poucos quilômetros de Roma, aos 39, mas sem nunca ter botado os pés de novo na cidade. “Foi colocado numa cama, com febre muito forte, e ali, sem ajuda de Deus ou de amigos, morreu depois de alguns dias, tão miseravelmente quanto viveu”, disse o artista Giovanni Baglione, que havia o processado por ofensa

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