Vou lá no fundo, sou vagabundo
Redação DM
Publicado em 31 de agosto de 2021 às 18:59 | Atualizado há 4 anos
A voz de Angela Ro Ro, 71, continua espontânea. Selvagem na linha da cantora Etta James, a rouquidão temperada ao uísque do canto de Ro Ro encontra vazão melódica na tradição dolorosa do blues. E não foi só a harmonia em notas baixas que lhe tornou uma santidade da música brasileira: ela passeia pelo samba-canção esbanjando a mesma facilidade na qual flerta com o R&B, além de rock e jazz, em cujos gêneros incorpora a chanson francesa de Jacques Brel e a música de cabaré da alemã Kurt Weill.
Ro Ro, de fato, é uma santidade do lirismo molhado ao gosto da melhor – ou pior, dependendo da ocasião em que se ouve – invenção da Escócia. A cantora se apresenta hoje, às 21h30, em live transmitida pelo canal no Youtube da UFG, no projeto Música no Campus, iniciativa organizada pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Sem dinheiro, a autora de “A Mim e a Mais Ninguém” anunciou em julho deste ano que passava por dificuldades financeiras – e aceitava transferência via Pix, DOC ou TED.
“Sinto muito ter que postar isto de novo”, exclamou a cantora, em julho deste ano, num post publicado nas redes sociais. “Estou passando por dificuldades financeiras. Quem pode depositar apenas R$10, agradeço. Saúde a todos.” Essa, porém, não era a primeira vez que a cantora recorria a ajuda dos fãs para driblar o sufoco financeiro. Em novembro de 2020, pediu dinheiro da mesma forma: “Estou passando por dificuldade financeira! Quem pode depositar apenas R$ 10, agradeço.”
Nascida em Copacabana no dia 5 de dezembro de 1949, Angela Maria Diniz Gonsalves foi criada em Ipanema e fecundada num carnaval em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, onde agarrou-se bem cedo à fossa de Maysa e ao sofrimento cantado pela diva do jazz Ella Fitzgerald, mas também ao rock iê-iê-iê repetitivo dos Beatles e a sujeira charmosamente distorcida dos Rolling Stones. Ro Ro canta seguindo o instinto que vem direito da alma, numa afinação livre e com força melódica poderosa.
Com clima de madrugada em que a fumaça de cigarros circula pelos bares, como se estivéssemos sentados numa mesa com o coração partido pelas lâminas daquele grande amor, as batidas leves e suaves transformaram a voz aveludada de Ro Ro numa das mais originais da música brasileira surgidas no final dos anos 1970. É como se as histórias de amor, vícios difíceis de abandonar e porres embalados pela covardia gerada pelo nó no peito não fizessem sentido noutra artista a não ser nela.
Também pudera: suas letras, majoritariamente, são inspiradas nos percalços sentimentais da vida – a dela. Cru como a solidão do blues e cortante à moda de uma paixão, as composições apresentam ao ouvinte uma persona boemia, flanando pelas ruas do Rio, de bar e bar, com uma pretensão declaradamente lésbica e sexual. E, claro, sempre acompanhado pelo discurso bem-humorado, quando não corrosivo.
CARREIRA
Na primeira fase da carreira, por exemplo, Ro Ro revela um estilo carregado em palavrões, risos sarcásticos e estado permanentemente ébrio. É a alma de “Angela Ro Ro” (1979), primeiro LP da cantora e que conta com os sucessos eternos “Amor, Meu Grande” e “A Mim e a Mais Ninguém”. Mas é no segundo disco, “Escândalo” (1981), que Angela Ro Ro choca a sociedade, ao simular – na própria capa do álbum – uma manchete de jornal como crítica a uma exposição midiática de sua vida pessoal.
É de “Escândalo”, inclusive, a canção “Meu Mal é a Birita”, uma passagem autobiográfica na qual abordava a fama de alcoólatra em que Ro Ro se via inserida em meio à teia de informações criadas por jornais e revistas. “Birinight/ Bar em bar vamos rodando/ E se um dia eu parar/ Birinight/ É sinal que eu aprendi a amar”, canta. E emenda: “Enquanto isso não vem eu faço o que me convém/ E o que bem me apraz/ Se não for bom prá você vá procurar outro alguém/ Que beba menos e que ame mais.”
Se no primeiro disco Ro Ro contou com a colaboração do pianista Antônio Adolfo nos arranjos e composições e encontrou lirismo nas narrativas de coração partido pelos bares e boates de uma Copacabana setentista, em “Escândalo” a artista tratou de sacudir os paradigmas de uma sociedade ainda forjada sob preceitos conservadores e reacionários. E tudo embalado por melodias que representam o clima noturno de uma vida escorada em dores de cotovelos: é uma música para corações selvagens.
Nos últimos anos, em trabalhos lançados recentemente, Ro Ro mudou os temas que abordava em suas letras, além de ter guinado para o samba. “Acertei no Milênio” (2000), por exemplo, demostra um discurso bem malandro: “Brasileiro, acerto o milênio/ Ganhei quinhentos anos/ Eu quero trabalhar”. Já em “Boemia do Sono”, da mesma safra sambista, ri de si mesmo ao relatar seu recente estilo de vida: “Acordo da boemia do sono/ São seis horas da manhã/ Mas não volto para a cama não/ Monto na bicicleta ergométrica/ Tiro chinfra meia hora/ E vou buscar o jornal.”
Primeira cantora conhecida a se apresentar como lésbica, razão pela qual dizia que em seus shows que era a única da MPB, Angela Ro Ro é uma artista que conseguiu aliar o melhor da tradição do blues com a brasilidade, universo artístico que pode ser conferido nos dois primeiros discos da cantora. Ro Ro é transgressora por excelência, dessas cantoras que só nos damos conta de sua grandeza quando já estão sucumbindo pelo estrangulamento financeiro. Portanto, prestigiem-na hoje no Música no Campus.
E, antes de mais nada, “eu sei que o tempo vai passar e as coisas vão ficar, porque acredito em mim”: todo amor que eu amei dediquei a mim e a mais ninguém.