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Carne Doce lança nas plataformas de streaming primeiro single de novo álbum

Faixa exibe texto apurado da vocalista Salma Jô, com paralelos que podem ser encontrados na tradição poética de nosso idioma

Vocalista Salma Jô é clicada em imagem de divulgação do single “Noites Tristes” - Foto: Gabriel Lara de Arruda/ Divulgação Vocalista Salma Jô é clicada em imagem de divulgação do single “Noites Tristes” - Foto: Gabriel Lara de Arruda/ Divulgação

A banda Carne Doce expurga a saudade dos fãs ao lançar nas plataformas de streaming à meia-noite desta sexta-feira, 19, a música “Noite dos Tristes”. Na canção, a primeira do aguardado quinto disco produzido pelo grupo goiano, pode-se ouvir a característica sonoridade sensual da carne, mas com um toque poético pra lá de atraente e ao mesmo tempo melancólico. Melancolia essa que é docemente gostosa: trata-se de canção para aqueles que acordaram felizes, como anuncia o verso cantado pela vocalista Salma Jô.

Ao escutarmos a faixa, nasce no âmago das nossas almas uma vontade desvairada de sair por aí para encontrar “gente que também é um pouco triste”. Aqui, me perdoe, leitor, eu evoquei Fernando Pessoa, o poeta responsável por dizer que toda poesia - e a canção é uma poesia ajudada, ensina o mestre português - reflete o que nós não temos. “Por isso a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste”, define Pessoa, no clássico “O Fado e a Alma Portuguesa”, um texto essencial tal qual costuma ser toda a obra pessoana.

Salma vocaliza que curte sair para encontrar gente que também é um bocado triste e está curiosa pra ver “juntinho mais um dia terminar”. “Na noite dos tristes/ revivendo o mistério/ de ver toda essa alegria/ transbordar”, canta. Sim, há que se destacar a habilidade discursiva da artista em burilar palavras até torná-las interessantes para o texto musical. Essa é uma tradição do cancioneiro brasileiro, vide Torquato Neto e Cacaso, por exemplo.


		Carne Doce lança nas plataformas de streaming primeiro single de novo álbum
Carne Doce, destaque no cenário alternativo: psicodelia e pós-tropicalismo. Foto: Instagram/ Carne Doce

Poesia, como vemos, há. E de sobra. Atente-se para os versos de “Comida Amarga”, canção do disco “Tônus”, lançado em 2018: “Nenhum disfarce no teu olhar/ eu já venci, já não sou mais gostosa/ Você goza triste em mim”. Ou, se preferir, veja o que Salma tem a nos falar na erótica “Amor Distrai (Durin)”, do mesmo disco: “Cê vem macio, cê vem durin/ Relaxa, encaixa, engata em mim, me bota sem apoio/ Seu corpo é meu apoio pra eu deixar cair/ Sem me machucar muito” Quem não gosta de gozar em alto e bom som, afinal de contas?

Ao Diário da Manhã, o guitarrista Macloys Aquino - parceiro de Salma na vida e na arte - já declarou que observa nas letras escritas pela vocalista uma predileção por explorar a dualidade da natureza humana, como moral versus imoral, devasso versos púdico, razão versos impulso. “É uma inclinação dela, dos autores que ela lê, de como ela vê a vida, e que ela acabou aprimorando com o exercício da composição”, contou o músico, numa época de incerteza em que a covid criou simulacros da realidade - eu na minha casa, Macloys na dele.

As letras de Salma adquirem cor com os arranjos criados por Macloys, com guitarras melódicas, cheias de efeito e regionalidade. Sim, a música do grupo carrega a goianidade, falando sobre a infância (“Amigo dos Bichos”), sibilando contra a expansão urbana (“Sertão Urbano”) e versando sobre o fato de cada vez mais - ainda bem - o povo ser preto (“Preto Negro”). Como mostra a historiografia, Goiás foi formado pelos povos originários, mas chegara a ser assaltado quando os bandeirantes aqui puseram os pés, no Ciclo do Ouro.

Olhos e ouvidos

Desde 2014, cada lançamento da banda goiana atrai olhos e ouvidos Brasil afora. Assim como Boogarins, amigos que se internacionalizam na última década, o casal de compositores leva pelo País a aridez do Centro-Oeste. Todos os discos lançados até aqui - “Carne Doce”, de 2014, “Princesa”, de 2016, “Tônus”, de 2018, e “Interior”, de 2020 - receberam elogios da crítica especializada. E, com isso, o grupo começou a participar de principais festivais de música, como o tradicional Lollapalooza, no qual se apresentaram (e bem) em 2019.

Em 2016, dois anos depois do bem-falado primeiro disco, “Princesa” inseriu no grupo a pecha de “trilha feminista”, porém Macloys Aquino ressaltou a este jornal, em 2020, que o álbum em si não tinha essa pretensão. Contudo, goste-se ou não, e se trata de obra-chave na discografia dos goianos, duas canções reforçaram tal status: “Artemísia”, um retrato de uma mulher que abortou, e “Falo”, uma crítica que explora as tensões vividas patriarcado, sistema social cuja educação e cultura possibilita relações sociais que favorecem os homens.

Sim, a banda virou uma voz pública feminista, o que não a impediu de ser exposta nas redes sociais. De acordo com internautas, a Carne Doce teria passado pano para um ex-baterista acusado de estupro, embora o músico tenha sido afastado algum tempo depois, no final de 2018. Mesmo assim, isso desencadeou uma onda de shows cancelados, conforme a banda relatou em publicação realizada na plataforma X, à época ainda chamada de Twitter: “É arbitrária e grotesca a forma como se deu o cerceamento das apresentações”.

Para o grupo, a crítica é um direito de todos os cidadãos. “É inaceitável, no entanto, que se defenda o cancelamento de uma artista e todo o seu trabalho como solução para acusações alheias, como instrumento de moralização”, disse a banda, numa postagem no antigo Twitter. “Esta pequena turnê que reuniria Carne Doce e Letrux, e que envolveria outros profissionais, se inspirava em mútua admiração artística e ideológica, e em uma relação de afeto que se construiu na estrada nos últimos anos, nos shows que já fizemos juntos.”

Já aos primeiros acordes, sem perder tempo, percebe-se no som da Carne Doce as marcas de Gal Costa, com pitadas de Elis Regina - influência de Salma: há interessantes incursões pela vanguarda, pelo regionalismo e pelo vintage. “Noite dos Tristes” nos deixa ansiosos: o que esperar do próximo disco? Ora, boa música - a mesma que as pessoas se posicionarem à frente do palco, no Lollapalooza, para ouvi-los tocando aquela música psicodélica e se encantando com aquele pós-tropicalismo. Aguardemos pelo que virá no futuro.

Noite dos Tristes

Banda: Carne Doce

Gênero: indie

Disponível no streaming à meia-noite

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