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Toda nudez será castigada

Uma mama cercada por um olho que escorre uma gota de leite gerou dor de cabeça para o cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Cartaz de “Madres Paralelas”, seu novo filme e cuja estreia mundial foi no último Festival de Veneza, a imagem não passou despercebida pela censura do Instagram. Desde então, artistas que retratam a nudez e a seminudez estão no centro de uma discussão que esbarra em um ponto: se existem páginas pornográficas nessa mesma rede, por que um seio é digno de ser vetado?

É certo que as plataformas, de alguma maneira, se comportam de forma pouco transparente no conteúdo que é ou não barrado. Existem perfis de mulheres nuas e até mesmo sexo explícito que já foram denunciados, mas a justificativa é que isso não fere as diretrizes de uso. “Eu já tive trabalho de nu feminino barrado pelo Instagram, mesmo com o que chamamos de “efeito blur” nas fotos. O que temos que nos perguntar é: quais são os corpos que o Instagram censura? Ou, qual a perspectiva sobre os corpos que as redes sociais censuram”, questiona a fotógrafa Abigail Botelho.

A partir do momento que Abigail percebeu que a perspectiva que adotava sobre os corpos femininos em seu trabalho não seria aceita pelas redes, ela desistiu de publicar. Já Almodóvar, com a popularidade midiática que tem, conseguiu fazer a plataforma vir a p´úblico pedir desculpas. E aproveitou a ocasião – em texto veiculado no perfil da atriz espanhola Penépole Cruz, protagonista de “Madres Paralelas” – para criticar “as mentes por atrás do algoritimo que decide o que é, ou não, obsceno e ofensivo”.

Mas esse privilégio está longe de ser a realidade de todo artista, especialmente dos que fazem parte de um cenário underground. É o caso do jornalista e ilustrador Heitor Vilela, que publica seus rabiscos na página Rabiscos e Escarros: “Já tive algumas ilustrações censuradas. A maioria delas por conter nudez feminina, independente do contexto.” É importante ressaltar também que imagens de cunho feminista são alvo do crivo do Instagram, em grosso modo aquelas que mostram seios em manifestações.

Se por um lado os artistas precisam lidar com a mordaça das redes sociais, por outro elas ajudam que nomes pouco conhecidos do grande público ganhem fôlego ou mesmo fiquem com seus trabalhos em evidência. Há uma série profissionais, das áreas mais diversas das artes, como cinema, pintura e ilustração, que possuem obras pensadas para o campo digital, onde conseguem se comunicar com um público amplo e diverso.

De toda forma, porém, é desgastante ser censurado: o artista perde engajamento, o perfil dele é suspenso e, no final das contas, fica no prejuízo. Nesse sentido, as redes não só sabem como diferenciar arte de pornografia, como recusam a expressão artística para aderir a segunda opção. “A fotógrafa Ana Harff é minha referência nessa área: ela retrata, de forma artística, corpos de mulheres diversas e sempre que esses corpos fogem ao padrão, as fotos são censuradas - mesmo com recortes que não mostram nada”, afirma Abigail, que mantém a página Poemas com Brocoli, no Instagram.

Dono de traço transgressor, com referências a cenas de sexo oral explícito entre duas mulheres e entre um homem e uma mulher, o ilustrador Heitor Vilela relata que esses desenhos estão até hoje disponíveis em sua página tanto no Facebook como no Instagram. “A sugestão que eu dou – na hora de postar a imagem – é colocar uma censura prévia para evitar que seu trabalho ou conta sejam censuradas ou bloqueados por alguns meses. Ou fazer isso dentro do desenho, como na Idade Média, colocando uma flor, uma folhinha, para tampar os mamilos femininos”, ironiza.

Cartaz vermelho-sangue mostra mamilo escorrendo gota de leite
Cartaz censurado de 'Madres Paralelas', filme de Pedro Almodóvar - Foto: Divulgação

Para o artista visual Benedito Ferreira, cada obra requer um lugar para ser mostrada, editada e comercializada. “Não gostaria de ficar refém do Instagram ou de outras plataformas, mesmo que meu trabalho converse com o meio digital. Uma alternativa para isso é justamente compreender o que o trabalho está pedindo, qual é o melhor espaço para mostrá-lo”, reflete Benedito. Recentemente, ele participou de uma ocupação virtual promovida pela Faculdade de Artes Visuais da UFG em seu Instagram, com uma imagem em vídeo que esteve em exposições em Paris e Montreal.

O trabalho se chama “Bestiário” e é basicamente um close-up numa nádega masculina que tem um pompom cor-de-rosa brilhoso acoplado em uma calcinha. Ao longo do movimento do bailarino, os artistas acompanham uma música em lentidão e o aparecimento de cartelas que falam de um lugar misterioso, uma paisagem inabitada.

De olho no lucro, as redes sociais enveredam para a censura quando não existe possibilidade de faturamento. O que fazer para burlar esse modus operandi? Como deixá-lo desconcertado? Quando se fala sobre corpo é a arte quem mais contribuiu, e contribui ainda hoje, para a ruptura com paradigmas, falsa moral, regras caducas e percepções defasadas, vide os textos escritos por Henry Miller na literatura ou o clássico “A Origem do Mundo”, de Gustave Coubert, artista do qual Charles Baudelaire – mestre das palavras com gosto para a transgressão – era amigo.

Sem esquecer, claro, que tudo atualmente segue uma lógica de mercado: se é rentável, ok; se não é, tchau. “Por isso, acho que a única saída é criar redes autônomas na internet para compartilhar esses trabalhos. Os museus, as galerias e a rua estão muito à frente de todas as plataformas nesse sentido, é preciso trazer isso pra dentro da internet”, atesta a fotógrafa Abigail Botelho. “Indico seguir o perfil de Ana Harff para todos que tenham interesse em entender esse movimento de censura nas redes.”  

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