Escombros de uma utopia
Redação DM
Publicado em 10 de novembro de 2015 às 00:53 | Atualizado há 6 meses- Guia-genial dos povos, Josef Stálin, é alvo de chacotas
- Falta de produtos nas prateleiras serve para as ironias
- Existência de Deus aparece nas diatribes dos comunistas
- Slavoj Zizek repassa os anos de ouro e de chumbo soviéticos
União Soviética, primeiros anos do socialismo, século XX. No Politburo, há um acalorado debate entre os bolcheviques se o dinheiro continuaria a existir no comunismo. Leon Trotsky e seus adeptos dizem que não, já que a moeda é necessária apenas em sociedades onde existam a propriedade privada. Liberais, como o brilhante Nikholai Bukharin, contestam e afirmam que sim, pois a sociedade necessita dele para regular a troca de produtos. Tido como bronco, o bigodudo Josef Stálin, um ex-seminarista, refuta as duas propostas e sai como uma ideia brilhante. Para ele, a verdade é uma síntese dialética superior entre os opostos. O que seria isso, perguntam, perplexos, os camaradas. Stálin responde calmamente:
– Haverá e não haverá dinheiro no comunismo. Alguns terão dinheiro e outros não!
Essa é uma das anedotas dos tempos soviéticos que compõe ‘As Piadas de Zizek – Já ouviu aquela sobre Hegel e a negação?’ [2015], lançamento da Editora Três Estrelas, do grupo Folha de São Paulo, de autoria do filósofo esloveno Slavoj Zizek. O autor aponta que o humor é uma eficiente arma para desafiar os poderes constituídos. “O escritor dá o bônus da risada inteligente”. Afinal, trata-se de um incorrigível piadista. Ele recorda-se até de uma utilizada pela VAR-Palmares – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares -, que expropriou em 1969, no Rio de Janeiro, o cofre de Ana Capriglione, codinome Dr. Rui, a amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, famoso pelo bordão “Rouba, mas faz”:
– O que é o assalto a um banco comparada à fundação de um banco?
Rsrsrsrsrsrs
À época do socialismo real, relata Slavoj Zizek, um político iugoslavo, cujo comandante era Josip Broz Tito, morto em 1980, viajava para a Alemanha. Quando o trem passa por um cidade, ele pergunta ao guia:
– Que lugar é esse?
Ele responde:
– Baden-Baden.
Espumando de raiva, o burocrata esbraveja:
– Estás achando que sou idiota? Não precisa falar duas vezes.
O marxista refinado conta também uma clássica da era soviética. Leonid Brejnev, que controlou a ex-URSS com mão-de-ferro de 1964 a 1982, após depor Nikita Kruschev, aquele mesmo que denunciou ao XX Congresso do PCURSS, em fevereiro de 1956, os crimes de Stálin, morre e é levado para o inferno. Como era um dos sete homens de ouro do socialismo russo, ele ganha o privilégio de dar um passeio e escolher o próprio quarto. O guia, então, abre uma porta, e Brejnev vê Kruschev sentado em um sofá, beijando e acariciando Marilyn Monroe, sentada em seu colo. Brejnev exclama alegremente: adoraria ficar neste quarto. O guia responde: Não se anime tanto, camarada! Esse não é o quarto de Kruschev no inferno.
– É o de Marilyn Monroe!
Iúri Gagárin
Slavoj Zizek registra que quando Iúri Gagárin, o primeiro cosmonauta, voltou de sua viagem ao espaço, ele teria sido recebido por Nikita Kruschev, velho ucraniano aliado de Stálin e depois seu algoz post-morten, secretário-geral do Partido Comunista, e diz a ele, em segredo:
– Sabe o que eu vi lá no céu, camarada? Deus no paraíso, rodeado de anjos. O cristianismo está certo!
Kruschev, então, sussurrou no seu ouvido:
– Eu sei, eu sei… Mas fique quieto, não conte nada a ninguém!
Uma semana depois, Iúri Gagárin fez uma visita ao Vaticano e confessou ao papa de plantão:
– Santo Padre, estive lá no céu e vi que Deus não existe…
O pontífice arremata:
– Eu sei, eu sei… Mas fique quieto, não conte nada a ninguém!
Expurgos stalinistas
O escritor turco e comunista Panait Istrati visitava a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS. Década de 1930, século passado. Época dos Processos de Moscou, de expurgos e de julgamentos-espetáculo. Uma carnificina sem tamanho. A velha guarda bolchevique, companheiros de Vladimir Ilich Ulianov, codinome Lenin, fora liquidada. Apesar disso, um defensor apaixonado da ditadura stalinista tentou convencê-lo da necessidade da violência contra os “inimigos do povo” evocandum velho provérbio que diz que “não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos”. Sucinto, Panait Istrati respondeu sem papas na língua: “Muito bem. Já estou vendo os ovos quebrados. Mas cadê a omelete?”.
Os iugoslavos desdenhavam da corrupção policial no socialismo. Em uma antiga piada, um policial volta para a casa no meio da tarde e encontra a sua mulher nua, extremamente excitada. Desconfiado de que quase a flagrou com um amante, ele começa a procurar vestígios do outro no quarto. Quando o marido se agacha para olhar embaixo da cama, a esposa fica completamente pálida. Mas, depois de dar um breve suspiro, ele se levanta, satisfeito, com um sorriso presunçoso no rosto e dispara: “Desculpe-me meu amor, foi alarme falso. Não tem ninguém embaixo da cama”, fuzila o policial, enquanto guarda no bolso uma notas de cem.
Em uma velha piada eslovena, um jovem estudante precisa escrever uma redação curta com o seguinte título: “Mãe só tem uma”. A ideia da professora é que os alunos ilustrem, a partir de uma experiência singular, o amor que os unem às suas mães. O garoto, então, escreve: Um dia voltei para a casa mais cedo. É que a professora tinha adoecido. Procurei minha mãe e a encontrei nua na cama com um homem que não era meu pai. Ela, furiosa, gritou: ‘Por que está me olhando com essa cara de idiota? Vá correndo à cozinha e pegue duas cervejas geladas! Corri até a cozinha, abri a geladeira, olhei nas prateleiras e gritei:
– Mãe, só tem uma!'”
Polônia, era socialista. Um consumidor entra em uma loja e pergunta: “Você não deve ter manteiga; ou será que tem?. Do balcão, o vendedor responde: “Desculpe, o senhor está na loja que não tem papel higiênico. A que não tem manteiga fica do outro lado da rua!”.
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Conceitualmente, Slavoj Zizek é taxativo:
– A graça das piadas é exatamente magoar ou humilhar alguém…
Trechos do livro
Deus não existe?
“O Deus que tramamos aqui é bem parecido com o Deus da piada bolchevique sobre um hábil propagandista comunista. Ao chegar ao inferno depois da sua morte, ele logo convence os guardas a deixá-lo ir para o céu. Quando o diabo nota a ausência do comunista, ele vai correndo visitar Deus e exigir que devolva o que pertence ao inferno. Porém, assim que o ‘coisa ruim’ começa a falar com Deus, dizendo “meu Senhor”, Deus o interrompe:
– Primeiro, não sou seu senhor, sou seu camarada. Segundo, você está maluco de falar com um ser fictício. Eu nem existo! Terceiro, seja rápido, senão vou perder a reunião da célula do partido!
Esse é o Deus de que a esquerda radical de hoje precisa: um Deus que se ‘tornou homem’ totalmente – um camarada entre nós, crucificado entre dois proscritos da sociedade – e que, além de não existir, sabe que não existe e aceita a própria eliminação, transfigurando-se inteiramente no amor que une os membros do ‘Espírito Santo’ [O partido, o coletivo emancipador]
Serviço
Lançamento: Livro
Título: ‘As Piadas de Zizek – Já ouviu aquela sobre Hegel e a negação?’
Ano: [2015]
Editora: Três Estrelas, do grupo Folha de São Paulo
Autoria: Slavoj Zizek
Número de páginas: 166
Apresentação: Vladimir Safatle
Avaliação: Ótimo
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Renato Dias, 48 anos de idade, jornalista, sociólogo, especialista em Políticas Públicas e mestre em Direito e Relações Internacionais acreditou anos e anos no socialismo como redenção da humanidade. Hoje, é um cronista das revoluções perdidas.