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Keith Richards faz tributo ao blues de Chicago em EP

Estamos em setembro de 1965. Keith Richards está no canto direito de um teatro abarrotado em Dublin, na Irlanda, e toca o riff duh-dunt-dah-duh da música “Little Red Rooster”, escrita pelo blues-man Willie Dixon e gravada em 1961 por Howlin´Wolf. E Brian Jones, talvez o mais purista dos integrantes dos Rolling Stones, manda ver os acordes da slide guitar sobre os quais alimentava uma devoção quase religiosa. Mick Jagger sopra a gaita de boca e Charlie Watts marca o tempo na bateria.

A energia levantou o público presente – basicamente formado por adolescentes loucos por novas experiências e sensações libertárias – e, de repente, a situação saiu um pouco do controle, gerando uma confusão, com a galera se achando no direito de subir no palco para criar uma cartase. Nada fora do normal: qualquer shows dos Stones, fosse num bar vagabundo em Londres ou num mais espaço mais apresentável, criava um êxtase que explodiria entre uma nota e outra, como um orgasmo no auge do prazer.

Em 2021, o lendário guitarrista dos Stones virou um senhor de 77 anos e, ao que tudo indica, os anos em que vivia bebendo, cheirando, fumando e se picando ficaram para trás. Após o cancelamento de uma turnê, que passaria por Charlotte, Pittsburgh, Nashiville, Minneapolis, Tampa, Dallas, Atlanta, Detroit, New Orleans, Los Angeles e Las Vegas, ele aproveitou a pandemia para se trancar no estúdio. E o resultado foi “Blues”, EP com seis faixas onde o músico delicia nossos ouvidos.

Sujo como Muddy Waters e Jimmy Reed que Richards interpretava no começo da carreira, o compacto começa com a matadora “My Babe”, faixa composta por Little Walter, expoente da cena de Chicago – a partir da qual o Stone descobriu o universo na ponta dos seus dedos da afinação em sol, com cinco cordas. A música é acompanhada por um piano, e o ritmo é ditado por uma bateria safada: “My bae, I know she love me, my babe”, ou algo como “minha querida, eu sei que ela me ama, meu amor”.

A segunda faixa é “Big Town Playboy”, composta por Eddye Taylor em 1975, mas lançada no repertório de “Talk Is Cheap” (1988): o LP marcou a estreia do mestre dos riffs na carreira solo, numa época em que ele e Mick Jagger se alfinetavam na imprensa e por pouco os Rolling Stones não acabaram. A novidade da versão regravada em “Blues” para a original é o vigor. Ou seja, o brilho melódico do guitarrista Mick Taylor, com quem tocou nos discos “Let It Bleed” (1969), “Stickey Fingers” (1971), “Exile On Main Street” (1972), “Goats Head Soup” (1973) e “It´s Only Rock ´n´Roll” (1974).

Se até aqui o blues ditava o clima do EP, na terceira música é o rock dos anos 1950, também uma influência seminal na musicalidade dos Stones e, claro, do próprio instrumentista. É uma pegada que remete a um universo de transgressão, solos chuckberryano rápidos, de duas notas, mas que parece não dar uma folga para quem está escutando esse ritmo frenético. Boa parte da fama de ‘garotos malvados’ de Jagger, Richards, Jones e Watters nos anos 1960 fica por conta desse som.

O lendário músico no estúdio na década de 1970 - Foto: Jim Marshall/ Reprodução

Mas a alma de “Blues” definitivamente é o sub-gênero - mais sujo e elétrico - tocado por BB King em Chicago. Comandada pelo compasso duh-dunt-dah-duh, “Key To The Higway” soa como uma bela homenagem ao rei do blues: o eu-lírico sussurra que está com a chave para a auto-estrada e, sem ter outra saída, diz que precisa ir. “Little girl I´II be on my way”, alguma coisa como “garotinha, eu estarei no meu caminho”.

Guardas as devidas proporções, é como se fosse “Memory Motel”, dos Stones: o músico que, após uma noite de sexo com a groupie, resolve meter o pé na estrada, sem esquecer as lembranças de uma conversa ou um afeto, mesmo que temporário.

Próximo de chegar ao fim da peregrinação sonora pelo universo bluseiro do fundador dos Rolling Stones, curtimos a habilidade, vigor e feeling que o mestre dos riffs transmite nas notas tocadas com a mesma tranquilidade com a qual sentamos no bar para flertar e saborear as texturas do desejo. É coisa de lenda: parece que colocar o sentimento na ponta dos dedos é fácil, como se fosse ‘ah, cara, pegue a guitarra. É assim que se toca, é isso, vai lá, agora manda ver e traduz sua angústia em... blues’.

Até tentamos, é verdade, e – miseravelmente – fracassamos na empreitada. Afinal, somos meros mortais admirados com um estilo musical usado pelos blues-mans como um instrumento de sobrevivência numa sociedade marcada pelo ódio racial, absolutamente caótica e forjada sob os preceitos da pólvora – isso é contado, em detalhes, no documentário “Black, White and Blues”, do cineasta Ricardo Nauenberg.

Para fechar o EP, a extensa “Slim”, uma jam session de 10 minutos. O que, por si só, é surpreendente, pois o guitarrista britânico nunca foi o tipo de instrumentista que estica solos ou faz um som exageradamente rebuscado. Daí o prazer de ouvir sua música simples, mas carregada de emoção, ensinamento básico que Jimmy Reed, Muddy Waters, Buddy Guy e BB King lecionaram nos palcos, e hoje disponível no streaming.

Richards, claro, absorveu isso com naturalidade. Vale ressaltar que essa não é a primeira vez que o músico retorna ao universo do blues. Em 2016, com os Rolling Stones, lançou “Blue & Lonesome”, disco enérgico feito em cima de releituras de clássicos do gênero que Keith Richards e Mick Jagger são devotos. E, como sabemos, o resto é história.

‘Blues’

Artista: Keith Richards

Gênero: Blues

Faixas: Seis

Duração: 29 minutos e 4s

Disponível nas plataformas de streaming

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