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OPINIÃO

Contradição no cristianismo

No nosso último artigo, terça dia 26.1.16 (disponível em dmdigital.com.br), comentamos sobre o paradoxo cristão do “ser ou do não-ser”, conforme citado na peça trágida de Shakespeare, Hamlet – paradoxo que envolve a questão: devemos ser apenas passivos (renunciar a tudo) diante da vida e dos outros, ou teríamos de ter, na existência, uma postura mais pró-ativa ?

Já há séculos, esta é considerada a  peça  dramática mais famosa de Shakespeare e, segundo alguns estudiosos, p. ex. Harold Bloom, a mais importante de toda literatura.

O drama inglês envolve a dúvida de Hamlet, o príncipe da Dinamarca: deve ou não vingar o assassinato do pai, perpetrado pelo próprio irmão deste, que, logo  depois, casou-se com a mãe de Hamlet e assim, num golpe triplo (assassinato, incesto, usurpação), ascendeu ao trono do Reino?

A peça dramática desenrola-se sob o guante de forte tortura psicológica de Hamlet, paralisado por vastos momentos de inanição psíquica, alimentados por crises de consciência e escrúpulos, por exemplo, “minha mãe é ou não uma traidora”? “Merece ou não também morrer?”

Vários cientistas literários, dramaturgos, semiólogos, já se debruçaram sobre a questão: por que Hamlet fez tanto sucesso? O psiquiatra soviético Lev Vygotsky, que fora também um grande crítico literário antes de tornar-se médico e psicólogo, em duas ocasiões se debruça sobre o tema, como pode ser visto em seu livro “A tragédia de Hamlet” e num capítulo extenso de seu outro livro “Psicologia da Arte”, ambos pela Editora Martins. Nestes estudos Vygotsky faz uma revisão das várias interpretações, de diferentes autores, para o sucesso de Hamlet.

Para Vygotsky, o enorme apelo literário da obra diz respeito ao misticismo sobrenatural (espiritualismo, almas errantes, vida após a morte, sombras, etc) no qual a peça está envolta. Tal misticismo remete o leitor a uma “outra dimensão”, uma dimensão espiritual que contrasta com a visão materialista da vingança e da política. Para Vygostky, os contrastes são o “motor” da arte dramática ou literária.

A partir de uma visão do cristianismo, como já abordamos em nosso último artigo, avançamos outra interpretação. O drama de Hamlet (“ser ou não ser, agir ou não agir, renunciar ou não renunciar, perdoar ou não perdoar”) é o drama de toda Humanidade. É o drama de nosso corpo e nossa mente, que sermpre querem alguma coisa, um querer que sempre atropela mente e corpos de outras pessoas.

No nosso mundo, quase sempre, “querer para si é prejudicar os outros”, quase sempre, quando queremos alguma coisa temos de passar por cima do querer de alguma outra pessoa. Religiões e filósofos importantes (budismo, Schopenhaeur, Kierkgaard, Dostoieviski) só viram uma solução para isto:  renunciar a tudo (p. ex., os  personagens monásticos: Alíocha e o príncipe, de “Os irmãos Karamazov” e “O Idiota” de Dostoievski). “Renunciar a tudo”, “morrer em vida”, “isolar-se do mundo”, “contemplação passiva”, “integrar-se ao Universo”, “deixar-se anular pela passividade do Nirvana”.

Shakespeare, com sua genialidade artística, captou todo este dilema universal, toda esta “injustiça trágica” que Deus causou ao homem: “Desejar é matar.” Se Hamlet, p. ex., fosse dar vazão a seu desejo, ele teria de matar o tio, muita gente da corte e até a mãe, “cúmplice” na sórdida trama.

A peça artística de sucesso, ao contrário do que diziam os “formalistas russos”, não depende apenas de uma “forma perfeita”, uma “estrutura arquetipicamente aceita e consagrada”, nem mesmo de uma trama bem urdida. Depende também – e talvez seja isto que qualifique uma obra como “universal” – do apelo profundo aos grandes dilemas trágicos da existência, e Shakespeare soube captar magistralmente um deles.

(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra. Artigos as terças, sextas, domingos - [email protected])

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